Dicionário de Cama

* O título é apenas uma homenagem ao filme Dicionário de Cama (Sleeping Dicionary) de Guy Jenkin. Não tem muito a ver com o tema do post.
Embora a maioria das pessoas tenham o hábito de colocar todas as deficiências como similares, elas não são iguais.
Esses dias, eu estava na agência e vi uma revista em cima da mesa da revisora, a Sônia (ela é gente boa, lê meu blog e até comenta de vez em quando hihihi). Passei a mão na revista e comecei a ler. Confesso que detesto ler revistas femininas, mas sempre tem uma coisa ou outra que faz o folhear dela valer a pena.
Mas, essa edição da Nova (maio de 2009) chamou a minha atenção. Enquanto olhava as páginas sem grande interesse, deparo-me com um relato de Luciane Silva contando que o amor da vida dela era um paraaltleta,  o cadeirante Giovani de Freitas.
Contou que ele não tinha as pernas, por má formação causada por talidomida (remédio comumente receitado para enjôos de gravidez que depois descobriram ser responsável por má formação fetal) e no preconceito que ela enfrentou pra conseguir viver esse amor. Dizia que as pessoas eram contra, porque alegavam que ela iria ser eterna enfermeira do namorado ou que ele não poderia ter uma vida sexual normal com ela.
Eu não me choco mais com essas coisas, porque estou tão acostumada a ler/ver/ouvir (licença poética) sobre como “deficiente deveria namorar deficiente e ponto” que sinto até raiva de ter me acostumado com isso.
Mas, no caso dos deficientes auditivos, é bem mais comum mesmo, casarem-se entre si. Por uma questão simples: com a limitação da comunicação, é mais fácil conviverem apenas com quem fala o idoma deles (a Libras) e, portanto, apaixonarem-se e casarem uns com os outros. Ou com intérpretes. Ou com quem tem outro surdo na família e acaba aprendendo a língua de sinais por osmose.
No post de ontem, que eu falei sobre deficientes auditivos X idiomas estrangeiros,  meu amigo Juca Jardim me mandou um link que ilustra perfeitamente como funciona essa dinâmica da sociedade com os surdos que não tem pleno domínio da língua oral. É uma cena do filme Babel, filme de Alejandro González Iñárritu, que a maioria conhece como “aquele filme do Brad Pitt”.

[vídeo removido do YouTube]

Pelo fato de eu não usar a língua de sinais, eu nunca convivi com surdos e, consequentemente, nunca namorei um surdo. Mas acredito que já tenha rolado de alguém perder o interesse por mim, pelo fato de eu não ter audição, apenas não fiquei sabendo, mas é algo como se a pessoa achasse que uma pessoa que não segue o padrão mínimo de normalidade não fosse boa o bastante pra si, ou como se ela fosse boa demais e não devesse se corromper com coisas mundanas, como o amor. E vira tudo um eterno “querer-e-não-poder” que me lembra muito um poema de Salomão Jorge, chamado:
DESTINO
És uma rosa meiga, humilde e perfumada,
E eu sou um grande rio, imenso e tropical,
Do bálsamo do céu tu vives orvalhada,
E eu vivo a caminhar, sem fé e sem ideal…
Foge, foge de mim, desta ânsia desvairada
De te levar comigo, ó rosa virginal;
És uma flor de raça, amena e delicada,
E eu sou um vagabundo, indolente e sensual…Tenho ânsias de beijar tua boca pequena,
De levar para longe o teu corpo divino,
Mas tenho pena, rosa humilde, tenho pena…

Eu sou poeta também, também sentimental,
Afasta-te de mim, foge do meu destino,
Que é só para o teu bem, que é só para o meu mal.

Mas não é bem assim. Da mesma forma que é possível, quando se quer de verdade, namorar alguém de religião, raça, cultura ou nacionalidade diferente, é perfeitamente possível namorar alguém cujas diferenças físicas ou sensoriais não são similares às suas, basta querer…
Se o problema for o risco dos rebentos também terem deficiência, lembre-se que nem todas as deficiências são genéticas, podem ser causadas por problemas gestacionais ou adquiridas e, portanto, a prole tem tanta chance de ter uma deficiência quanto o filho de duas pessoas sem deficiência nenhuma.
Deficiência pode acarretar necessidades especias, mas nunca, jamais, deve ser motivo pra se fugir de um grande amor.

Beijinhos,

Lak

p.s. como eu não podia deixar de colocar Post Scriptum no final do post, me lembrei de uma bobagem. Há muito tempo atrás, quando eu ainda era solteira, conheci um cara numa balada e trocamos email (porque obviamente, não dava pra trocar telefone) aí ele me escreve o seguinte:
“Você é linda, maravilhosa, inteligente, simpática, engraçada, legal. Epa, perai, cadê o seu defeito?”
Eu respondi:
“Ué, eu sou surda…” <- Juro que falei isso com tom de brincadeira.
E ele me xingou de nomes que vou omitir, pra manter a censura livre do blog e completou: “Surdez não é defeito.”
Se todo mundo encarasse a vida assim, seria tão mais fácil, né?!

23 Resultados

  1. Bia disse:

    É, preciso encarar a vida assim também, torná-la mais fácil.

    Bom dia!

    • Avatar photo laklobato disse:

      Seria mais fácil mesmo, mas acho que é preciso quebrar muitos paradigmas internos do ranço da maioria pelos PcD’s antes desse dia chegar…
      Beijocas, Bia.

  2. Raul disse:

    Este filme, Babel é muito interessante por que fala exatamente de Babel, ou seja, pessoas que não conseguem se comunicar/entender por diversas maneiras – cultura, deficiência, etc.

    E eu já estive na pele da japonesa muitas vezes. É que como eu uso o implante coclear e ele fica visível, então é comum muitas pessoas verem o meu IC e acharem que eu não falo. Assim, acabam não se aproximando de mim. Eu é que tenho que me aproximar e mostrar que eu falo e os entendo normalmente. Quando era mais novo, era muito preocupado com isso. Hoje, ligo o botão “foda-se” do tipo: não quer falar comigo? Melhor pra mim. Assim evito conhecer mais uma possível aberração humana! 😀

  3. Raul disse:

    GTM? What´s porra is that? 😮

  4. Raul disse:

    Ops, What porra is that… 😀

    • Avatar photo laklobato disse:

      GTM = Je t’aime (a pronuncia maneira muito similar), portanto, é uma alusão de brincadeirinha com o “eu te amo” em francês. Hihihi

  5. Moi disse:

    Ainda não vi “Babel”. Foi pra lista.

  6. Juca Jardim disse:

    vamos trocar posts então pq eu não conhecia nada de Salomão Jorge e gostei demais desse soneto alexandrino… vai pro meu orkut já!!! rs…

    bom, Lak… como vc já tá acostumada com minhas gafes de ouvinte eu vou cometer mais uma: acho absolutamente atraente ver uma guria se comunicando por libras!… isso sempre exerceu um fascínio sobre mim como se ela tivesse um poder que pra sempre me fosse recusado!… mais: é como se ao mesmo tempo, na compenetração da conversa, ela tivesse deixando implícito que eu sou dispensável no mundo dela! (sei que vc vai protestar pq é justamente o oposto que as pessoas buscam, né!)… nem é preciso ler o ensaio do Freud sobre narcisismo pra entender o que isso significa! 😛

    mas esse efeito, apesar de não desejado, é real… e o fascínio dessa “exclusividade” na comunicação é coisa tão comprovável que já rendeu até filmes, né (não lembro os nomes mas assisti pelo menos dois onde o mocinho cai de quatro pela guria surda!)…

    mais beijo nos olhos!!! =***

    • Avatar photo laklobato disse:

      You Submit on May 13, 2009 1:45:50 PM GMT-03:00:

      Juquita, você sabe que essas japas do filme não estavam falando libras, né? Que a língua de sinais é nacional de cada país? Ah bom, então tá…
      Tudo bem vc achar sexy. Aprende o idioma e manda ver! hahaha
      Beijos

  7. Marcelo disse:

    Não vejo vantagem alguma em poder ouvir uma pessoa que já chega em você com esse preconceito todo. Agora, é preciso diferenciar “preconceito” de timidez, embaraço e falta de habilidade pra lidar com a situação. Eu confesso que o dia que encontrar pessoalmente com a Lakita vou me enrolar todo. 😛

  8. Marcelo disse:

    Ops!
    tira o segundo “já” dali, Lakita.

  9. EU RI hahahahahaa sabe porque? Me lembrei de um episodio engraçadissimo. Sai pra balada com uma pessoa que até então eu namorava, isso foi no comecinho de 2008, e alguns rapazes chegavam atrás de mim falando no meu ouvido, mas eu OBVIAMENTE não ouvia e saia andando. No fim a minha ex veio me dizer que não tinha como ela passar raiva por ciumes saindo comigo, porque não tinha dinheiro no mundo que pagava a cara que os mocinhos faziam quando eu saia andando sem nem sequer virar o rosto. Que o mais engraçado foi hora que um mocinho falou ” Nossa morro de vontade de beijar alguém com um piercing igual o seu ‘( eu tenho piercing no labio) e eu sai andando sem ouvir nem virar o rosto e ele ficou com o rosto vermelho de vergonha, e os amigos zuando. Quando ela me contou eu chorei de rir, porque as pessoas adoram achar que sou antipatica e nem chegam pra conversar comigo. Quando eu ou alguém conta o problema é ai que eles entendem e vem falar comigo normalmente, alguns perdem paciencia e mandar eu esquecer, e outros vou tentando até conseguir falar comigo direitinho. É como o Raul disse o lance é não se preocupar, ligar o ‘foda-se’ e ser feliz hahahahaa.

  10. Kumaiti disse:

    Pô, e eu q vim achando q era sobre as peculiaridades da vida sexual de um deficiente auditivo… hehehehehe.

  11. Juca Jardim disse:

    não me interessa muito a língua da língua de sinais! 😈 … eu acho legal ver aquela sucessão doida de gestos precisos… (ainda bem que nunca perdem a concentração pra perceber que eu tô olhando! 😛 )

  12. Maíra disse:

    Babel é um dos meus filmes prediletos. Aquela cena de que a menina não consegue acompanhar a música da boate… só entende um TUM TUM TUM… chorei na hora. Passei por isso muitas vezes…. até hoje não gosto de ambiente de música pois não consigo acompanhar como os demais.
    Mas isso tem um lado bom: conheci meu namorado numa boate (ele já era meio conhecido) e lá ele começou a fazer dublê das músicas… daí consegui acompanhar várias delas….
    😀
    Qt a LIBRAS, ela é linda mesmo, pena que ainda não tem toda base para fazer com que surdos sinalizados sejam bem formados, digamos, linguisticamente. Ela é realmente bonita.
    Ao contrário do que o Raul falou, muitos não percebem a minha surdez e vc sabia que o fato de não perceber tb me incomoda? Geralmente fico perdida com mtas pessoas falando (e outros mil casos) e tenho que avisar q sou surda. “Ãh? nem percebi”. O fato de não perceber, às vezes gera um ‘menosprezo’ com a ‘nao-surdez’, ou seja, no momento em que eu mais preciso, não sou atendida por parecer que não é tão ‘complexo’ assim. 😥

  13. Sônia disse:

    Oba!
    Primeiro foi Kafka, agora a revista feminina de figurinhas que teve uma matéria interessante. Aquele canto da minha mesa está funcionando melhor do que quando acumulava apenas jobs. Bjks

  14. Sônia disse:

    Essa louca e todos os demais podem observar, ficar tentados e esticar o pescoço pra aplicar aquela esticada de olhos sobre os meus textos, periódicos, livros, dicionários, enfim. O conhecimento é o bem maior. Bjsssssssss

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