O pico do Everest

Quando eu perdi a audição, a minha vida mudou, é claro. Não tem como esperar que seria diferente. O som serve para uma diversidade infinita de coisas – embora a maioria tenda a pentaxachar que serve mesmo é pra música e bate papo – e, inclusive, o cérebro busca a referência dele como o sistema de alerta.

Alerta?  Sim, é normal, quando você (ouvinte) está quase adormecido, acordar porque caiu alguma coisa na cozinha. A visão é o nosso principal sentido, responsável por 70% das informações do mundo, que chegam ao cérebro, quando a audição fica com 25% (o resto é distribuido pelos outros sentidos), mas esses 25% não são menos importantes que os 70% da visão, visto que a audição é um sentido ao qual se tem muito menos controle seletivo – afinal, é dificil tampar totalmente o ouvido, mesmo quando não se  quer ouvir alguma coisa.

As mudanças que eu tive que fazer não se limitaram a acostumar-me a não ouvir música para relaxar ou ter que olhar fixa e atentamente às pessoas com quem converso, mas um enorme conjunto de coisas que foram necessárias na adaptação. O principal deles foi reaprender a dormir sem sentir medo.

Quando uma pessoa sofre um acidente de carro, é bastante comum que ela passe a ter uma certa fobia de dirigir. No meu caso, a minha deficiência veio por meio de uma doença, mas manifestou-se durante o sono. Então, dormir, que antes era uma mera necessidade prazerosa, passou a ser também um dos meus maiores medos. Até hoje, eu chego a acordar 10 vezes numa mesma noite, para conferir se eu não perdi a visão dormindo. Não importa que psicólogos e psiquiatras tenham me dito que a chance disso acontecer é remota, porque um raio não cai duas vezes no mesmo lugar (será?)

Há cerca de quatro meses (exatos 22 anos após de ter perdido a audição), no final do carnaval que eu tinha passado arrumando a casa da mudança, acordei de manhã e meu olho esquerdo estava muito mais escuro que o normal. Cocei o olho, depois o lavei. E finalmente reconheci que não era apenas impressão, meu olho estava parcialmente cego. A sensação de pavor foi quase imediata. Chamei o Edu e falei:
– Meu, eu não estou enxergando.
Sabendo que eu sou uma pessoa absolutamente paranóica com essa súbita ausência de sentidos, ele tentou me acalmar, dizendo que fosse o que fosse, era parcial, porque eu estava enxergando ele.

Fui trabalhar e, assim que vi minha mãe online no MSN, pedi pra ela marcar minha oftalmologista de confiança. As pessoas acham engraçado eu ter um oftalmologista de confiança, sendo que eu sou deficiente auditiva. Mas é simples, pra mim, eu tenho que cuidar com afinco do sentido que me resta. Ela estava de férias e só teria horário dali uma semana. Tentei ficar calma e passei o resto do dia e o dia seguinte lidando com meu pavor de forma racional. Mas não aguentei, acabei indo parar no pronto socorro e, por pura insistência minha, o médico fez um exame de fundo de olho e constatou uma inflamação na retina. Disse que era comum, que era tratável e, possivelmente, não ficaria sequelas. Ora, veja,  caxumba também não costumava ensurdecer totalmente uma pessoa (pelo menos não na época que eu fui diagnosticada), portanto estatísica nunca me foi garantia de nada. Voltei na minha médica, que pediu um exame chamado retinografia (fotografia da retina) e para eu seguir o tratamento proposto pelo médico do pronto socorro. Aproveitei pra ir também na minha médica homeopata, pra cuidar do lado emocional de mexer no pior dos meus medos.

Os dias foram passando e, apesar de lenta e gradativamente, minha visão ia retornando ao que era antes. Fiz a retinografia quase um mês depois do diagnóstico inicial. Ela, por sua vez, não acusou lesão nenhuma.

Voltei na oftalmologista, que disse que a inflamação inicial tinha sumido sem deixar lesões permanentes. Mas, no entanto, a fina cicatriz provocada pelo principio de descolamento de retina (quando ela inflama, tende a descolar) não iria sumir, porque ela nunca volta 100% ao que era antes. Felizmente, era possível se acostumar com a mancha permanente visivel quando se olha a coisas claras. E disse que poderia ser uma tendência a processos inflamatórios nos olhos, portanto, qualquer sensação de desconforto ou visão borrada, é motivo para procurar um médico urgentemente e dar início ao tratamento, para evitar danos mais graves.

Durante todo o tratamento, que durou cerca de 45 dias, eu reavalei toda a minha vida. Aprendi que nem tudo pelo que a gente passa, pode enfrentar sozinho. Que pedir ajuda não é sinal de fraqueza, mas de coragem de admitir que é mais fácil quando se tem apoio. Aprendi que temer alguma coisa, não impede que ela aconteça, mas faz você sofrer antes da hora. E aprendi que não importa o que aconteça, você encontra forças para suportar.

Hoje em dia, quando eu durmo, ainda abro os olhos algumas vezes por noite, para confirmar que estou enxergando. Mas não tem o mesmo peso, dormir não é mais algo que me assusta tanto assim, porque percebi que não o fato de eu dormir, que outro sentido meu será arrancado, é preciso uma doença para que isso aconteça. Portanto, eu posso dormir em paz.

E você? Tem medo de alguma coisa? Já teve que enfrentá-lo? Se enfrentou, sentiu que encarou como uma escalada ao Pico do Everest? E, conseguir vencê-lo é uma  sensação boa, não é?

Beijinhos,

Lakinha

20 Resultados

  1. Rogério disse:

    Lak, você falou de medo e vou falar de pânico. Mais especificamente da síndrome do pânico, algo com que convivo desde 1999. De início foi um desespero, mas hoje nossa convivência é bem pacífica, aprendi a ter controle sobre as crises. Cada caso é um caso, e felizmente não tive que lidar com medos sem motivo ou exagerados, mas tive momentos até de incapacitação, pois não conseguia trabalhar, às vezes sair de casa era impossível, sentia uma taquicardia violenta, sensação de desmaio iminente, despersonalização (sensação de estar saindo do corpo ou flutuando). Meu problema era com multidões, ambientes fechados ou lotados – que a medicina chama de Agorafobia -, e inúmeras vezes deixei de ir a festas, abandonei o supermercado na fila do caixa com o carrinho cheio, simplesmente porque tinha que sair dali. Entendo seu medo, e não vejo paranóia nas suas reações e seu cuidado aparentemente exagerado. Como você mesma disse, estatística não é garantia de nada. Aliás, no mais das vezes existem três tipos de mentira: a mentirinha, a mentirona e a estatística. Um beijo, linda, cada dia gosto mais do seu cafofo.

    • Avatar photo laklobato disse:

      HAHAHAHAHA adorei isso “existem três tipos de mentira: a mentirinha, a mentirona e a estatística.” vai virar jargão de praxe. Eu realmente acho estatística uma coisa inutil, quando se trata de nós mesmos. Dizer: “Ah, so tem 0,001% de chance de vc morrer engasgado” não me significa absolutamente NADA. Quem garante que eu faço parte do grupo dos afortunados 99,99% que morrerá de outra forma?
      Adoro seus comentários! Beijo imenso.

  2. renata disse:

    Lak, esse seu sentimento é absolutamente comum. Minha mãe perdeu a visão assistindo canção da russia no cinema (faz tempo 1947 mais ou menos), até hoje quando ela escuta a musica do filme seu olho que ela recuperou a visão embaça, segundo ela – fora que ela nem quer saber como terminou o filme, nunca mais ela assistiu. Parece estranho, mas eu como convivo com ela depois que ela ficou totalmente cega e recuperou a visão parcia, sempre achei isso absolutamente normal. Beijos 🙂

    • Avatar photo laklobato disse:

      Pior é ter que aguentar, quem não tem a menor idéia do que é ter uma parte de si roubada pelo destino, dizer que esse medo constante é frescura….
      Dá um beijo enorme na sua mãe por mim!
      Outro pra ti…
      p.s. que ironia, justo hoje tô com meu livro de russo aqui na bolsa…

  3. Bia disse:

    Eu passei muito tempo sofrendo sozinha por causa do TOC, quando decidi contar a uma amiga senti um alívio muito grande e ela me ajudou muito. Mas depois que contei me sentia como se estivesse sendo ameaçada, não sei explicar o por quê, mas felizmente isso passou.

    Beijão Lak!

  4. Alex Martins disse:

    Lak, eu tenho vários medos, até já conversamos sobre alguns. Pessoas me assustam, contato me assusta, demoro a me sentir seguro com as pessoas, fujo de lugares cheios (e trabalho como professor, pode chamar de maluco, eu assumo).

    As vezes consigo levar bem o medo, as vezes se torna impossível e eu chego a chorar de medo de algumas situações, fazer o que? Deixar a vida rolar.

    Aliás LINDO TEXTO!!!

  5. Maíra disse:

    Falaram mal da minha profissão! bua bua bua!

    Brincadeirinha 🙂

  6. Rogério disse:

    Pelo visto a Maíra é estatística, né? Peço perdão pela citação, de fato a intenção não era ofender o ofício ou os sentimentos de ninguém, foi mais uma brincadeira. Eu trabalho com auditoria e a estatística frequentemente faz parte do meu dia-a-dia, já que meu objeto de análise é sempre produto de amostra obtida estatisticamente. Noto, porém, que em alguns casos as ciências exatas (estatística incluída) são indevidamente utilizadas, eu diria até sem conhecimento de causa, por pessoas que trabalham com gestão de recursos humanos. Geralmente bato de frente com essa turma, porque não me entra na cabeça estudar, compreender e explicar as relações e reações humanas utilizando-se um meio essencialmente voltado para as ciências exatas. Um beijo, Maíra, respeito muito a estatística e seu trabalho. Apenas acho que, a exemplo do Gardenal e da energia nuclear, às vezes temos que ter bem definidas a finalidade e a dose.

  7. Juca disse:

    Lak, acho bem natural ter medo de perder uma coisa que acaba te ficando mais importante de uma hora pra outra…

    gozado que hj mesmo eu tava pensando muito nas palavras do Pessoa (“quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”)… é bonito sim mas o caso é que sempre tem outro Bojador esperando… então sempre a gente tá intimado à superação… eu tinha catorze anos tava aprendendo a dirigir com meu pai e uma vez ia saindo com o carro escondido mas só pra manobrar na frente de casa… minha mãe viu e correu pra me tirar do carro, abriu a porta qdo eu já tinha engatado a ré, eu assustei e acelerei no lugar de frear… acabei prensando a mão dela entra a porta e um poste… deu um corte feio mas não foi muito sério… só que demorou mais de dez anos pra eu criar coragem de dirigir sozinho 😐

    pra quem me conhece sabe que na infância e adolescência eu gastei TODAS minhas nove vidas!… hj mais ajuizado sou assombrado pelo medo de todo filho único: morrer antes dos meus pais! 😐 (isso se supera??? 😥 )

    beijos, guria! =***

    • Avatar photo laklobato disse:

      Hehehe, eu atropelei o professor da auto-escola pelo mesmo motivo: fiquei nelvosa e acelerei em vez de frear. Felizmene, não foi nada serio tb! hehehe
      Beijos

  8. Cybelle disse:

    Querida, adorei o seu texto. Todos nós temos medos, alguns em maior grau outros em menor, mas eles existem, e os enfrentando ficamos mai fortes e aprendemos s nos valorizar, isso faz parte da nossa evolução!
    Bjos e saudadessssssssssssssss 😯

  9. aldrey laufer disse:

    Nossa Lak eu tbm tenho medos,o problema é controlar nossos nervos,pra andar de carro hj controlo melhor,mas depois do meu acidente que criei esses medo,mas to sempre me ajudando !bj

  10. Diéfani Piovezan disse:

    Aiiii Lakinha, eu também sou meio paranoica com isso sabia? Ainda mais que tem casos de cegueira na familia da minha mâe. As vezes eu acordo no meio da noite e saio procurando meu celular ( por causa da luz) pra ter ctz q tá tudo certo hahahahaa, se eu sendo miope já atrapalha DEMAIS quem dirá se alguma coisa acontecer com meus olhinhos. Deus me livre.
    Beijoooos

    Ps: Resolvi o negocio do celular e coloquei o plano pra def. auditivo da vivo, um babado q até as msgs excedentes são mais baratas que o normal.

  11. Adriana disse:

    Lak, as suas descrições sobre a perda da audição são sempre comoventes. Para além disso, elas são reveladoras, pedagógicas. Isso é o mais relevante! Acho que me esqueci de te falar, mas além de meu marido, uma grande amiga também tem vivido essa experiência (não de forma abrupta como aconteceu com você, mas num processo lento e de contornos anunciados). Desde que comecei a te ler tenho me sentido capaz de compreeder melhor a aflição, a insegurança e a necessidade de readaptção que essa nova situação nos impõe a todos. Portanto, você tem se tornado leitura prazerosa e obrigatória na minha rotina. Beijoc@s de boa semana!

    • Avatar photo laklobato disse:

      Que bom que você vem aqui, sempre, me lembrar que a minha perda não foi em vão. Serve pra ajudar outras pessoas. Se fosse apenas UMA pessoa, ela já faria sentido. Imagine várias!!
      Beijinhos

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