Afinal, quantos surdos existem no Brasil? (spoiler: ninguém sabe)
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IBGE confirma: surdez não é sinônimo de Libras
Já vi muita gente usando os dados do Censo de 2010, realizado pelo IBGE para tentar forçar a ideia de que surdos oralizados ou surdos sinalizados são maioria ou minoria numérica e, com isso, exigir acessibilidade desta ou daquela forma. E resolvi torturar os números e tentar descobrir o que eles tinham a nos dizer sobre a deficiência auditiva. E, no fim, descobri que não é nada do que se imagina…
Em 2010 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística saiu pelo Brasil obtendo dados sobre a população brasileira. Dentre outras coisas, um dos itens pesquisados no Censo era descobrir o quanto a pessoa ouvia.
Para entender como como o IBGE contou os deficientes auditivos, temos que descobrir o que foi perguntado.
Para isso é preciso acessar o questionário original.
O questionário tem uma parte específica com perguntas sobre deficiências, mais especificamente: visual, auditiva, física e mental/intelectual.
Ao contrário do que muita gente pensa, o IBGE não perguntou se a pessoa usa aparelho auditivo, se a pessoa usa Libras, se a pessoa usa implante ou quanto decibéis ela ouve.
O Censo trazia uma única questão com relação à audição:
Transcrição:
6.15 – Tem dificuldade permanente de ouvir?
(se utiliza aparelho auditivo, faça sua avaliação quando o estiver utilizando)
- Sim, não consegue de modo algum
- Sim, grande dificuldade
- Sim, alguma dificuldade
- Não, nenhuma dificuldade
Como você pode ver, o IBGE apenas perguntou o quanto a pessoa ouve.
Mas como os entrevistados teriam que responder a pergunta?
A ideia é que a própria pessoa deveria responder o quanto ela ouve COM aparelho auditivo (ou outro dispositivo), seguindo essa classificação:
- Não consegue de modo algum: a pessoa declarou ser permanentemente incapaz de ouvir;
- Grande dificuldade: a pessoa que declarou ter grande dificuldade permanente de ouvir, mesmo usando aparelho auditivo;
- Alguma dificuldade: a pessoa que declarou ter alguma dificuldade permanente de ouvir, mesmo usando aparelho auditivo; ou
- Nenhuma dificuldade: a pessoa que declarou não ter qualquer dificuldade permanente de ouvir, mesmo precisando usar aparelho auditivo.
Na conclusão do IBGE (pg. 72), se a pessoa respondeu “tenho grande dificuldade” ou “não ouço de modo algum” ela seria considerada uma pessoa com deficiência auditiva severa.
Isso significa que a pergunta foi vinculada ao uso de uma tecnologia e não à condição médica da pessoa. Sendo assim, não se pode concluir se a pessoa clinicamente tem uma deficiência auditiva, que tipo de deficiência auditiva, que tipo de tecnologia auditiva ela usa ou se usa Libras.
A única conclusão que podemos tirar é o quanto a pessoa ouvia com o aparelho auditivo (isso se ela possuía um aparelho auditivo).
Sendo assim:
- Uma pessoa que ouve muito bem com aparelho auditivo ou implante coclear marcou que não tem “nenhuma dificuldade” e foi enquadrada na mesma condição de um ouvinte.
- Uma pessoa que estava com um aparelho auditivo inadequado (com falha ou antigo), pode ter sido enquadrada como tendo uma deficiência auditiva severa.
- Uma pessoa que perdeu seus aparelhos auditivos poderia marcar que tem “dificuldade permanente de ouvir”. Mas outra pessoa com exatamente a mesma condição poderia marcar que “não tem nenhuma dificuldade”, já que ouve com os aparelhos.
Vamos aos números
População residente com alguma deficiência auditiva
O IBGE entrevistou um total de 190.755.799 pessoas. Dessas, 5,1% declararam ter algum tipo de deficiência auditiva (o que seriam 9.717.318 pessoas na época).
Fonte: Censo 2010 – Tabela 8 (pg. 76)
Grau de dificuldade para ouvir
Dos entrevistados, 78% pessoas declararam que têm alguma dificuldade de ouvir, enquanto 19% possuíam uma grande dificuldade de ouvir e 4% não conseguiam ouvir de modo algum.
Fonte: Censo 2010 – Tabela 1.3.1 (pg. 114)
Alfabetização
Um outro dado interessante é notar a diferença de alfabetização entre a população com deficiência auditiva e a população geral. Enquanto 89,5% da população geral, com 5 anos ou mais, era alfabetizada, apenas 75,5% dos deficientes auditivos o eram.
Fonte: Censo 2010 – Tabela 1.3.11 (pg. 139)
O IBGE considera como alfabetizada a pessoa capaz de ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhece. Foi considerada analfabeta a pessoa que aprendeu a ler e escrever, mas que esqueceu devido a ter passado por um processo de alfabetização que não se consolidou e a que apenas assinava o próprio nome.
Por isso, com esses dados, não é possível dizer se os deficientes auditivos foram alfabetizados em Libras, em português ou não foram alfabetizados.
Frequenta escola ou creche
A mesma discrepância do item anterior também pode ser notada na frequência em escolas ou creches. Enquanto 31,2% da população geral frequentava escolas ou creches, apenas 12,3% dos deficientes auditivos o faziam.
Fonte: Censo 2010 – Tabela 1.3.12 (pg. 141)
Além disso, há também estatísticas sobre sexo, idade, trabalho e rendimento da população com deficiência auditiva.
Conclusão
Segundo o IBGE, a ideia era descobrir quantos brasileiros tem alguma deficiência severa para implementar políticas públicas para essa população (pg. 72):
A investigação dos graus de severidade de cada deficiência permitiu conhecer a parcela da população com deficiência severa, que se constitui no principal alvo das políticas públicas voltadas para a população com deficiência. São consideradas com deficiência severa visual, auditiva e motora as pessoas que declararam ter grande dificuldade ou que não conseguiam ver, ouvir ou se locomover de modo algum, e para aquelas que declararam ter deficiência mental ou intelectual.
O que dá para saber com esses dados?
Com o recenseamento, a única coisa que sabemos com certeza é que 9.717.318 pessoas autodeclararam não ouvir perfeitamente. Isso nem quer dizer que elas sejam surdas.
Além do relatório dos pesquisadores, seria possível acessar os dados brutos e descobrir mais detalhes sobre essa população, como o nível escolar, por exemplo. Mas, ainda assim, o que é possível extrair de apenas uma pergunta é muito limitado.
O que não dá para entender com esses dados?
Com uma única pergunta é difícil entender o universo e as peculiaridades da deficiência auditiva no país.
Com o Censo de 2010 NÃO é possível dizer:
- Quantos brasileiros são clinicamente e legalmente surdos
- Quantos brasileiros usam implante coclear
- Quantas pessoas usam aparelhos auditivos
- Quantos deficientes auditivos são oralizados
- Quantas pessoas utilizam a Língua Brasileira de Sinais
- Quantas pessoas são bilíngues (português/Libras)
- Quantas pessoas estão em escola inclusiva
- Quem precisa acessibilidade no atendimento de serviços públicos, cinemas e serviços telefônicos
- Que precisa dos serviços do SUS
- Quantos utilizam a lei de cotas
Para concluir: o Censo de 2010 NÃO serviu para esclarecer detalhes sobre a deficiência auditiva. Resta torcer para que o Censo de 2020 seja útil nesse sentido!
Beijinhos sonoros
Lak Lobato
Adorei, ainda bem que não usei nada. Beijo no coração e muito obrigada por este estudo.
Parabéns pelo artigo e pela pesquisa. Adorei seu questionamento.