30 minutos do mundo vistos através dos meus ouvidos
Meio dia e meia, saio pra almoçar. Meia hora de almoço já foi, mas não ligo. Quando se tem duas horas de almoço, a gente desperdiça sem dó. Tenho vontade de almoçar sozinha, então não pergunto pra ninguém onde vai almoçar. Saio da agência passando pelo departamento de criação. Ouço a menina do atendimento falando ao telefone “uãuãuã”, mas ignoro, porque não consigo discriminar a fala e, pra entender, teria que olhar pra ela. Desço as escadas, subo a outra (essa agência é singular) e saio na rua. Ouço, ao longe, o inconfundível som do trânsito pesado na Av. dos Bandeirantes. E, embora meus olhos não vejam, sei que aquele som mistura carros, motos e caminhões na vida fervilhante da capital paulista. Caminho pelo Brooklin adentro que, apesar de ser dia de semana, tem um tráfego suave de carros de tal modo que, por algumas frações do tempo fico restrita a apenas os sons das casas. A maior parte desse tempo, mergulho no silêncio pois das casas não me chega som nenhum. Vez ou outra, ouço um “uauauau” que identifico como o latido do cachorro da família que ali mora, muito embora eu reconheça melhor o som pelo padrão produzido do que pelo som em si. Sons, pra mim, tem quase uma forma visual, não sei explicar o porquê. Na medida que me aproximo da rua mais movimentada do bairro, o barulho dos veículos passa a tomar conta do silêncio, de vez. Não chega a me incomodar, porque não é muito alto. O dia corre tranquilo por aqui.
Passo num sebo, porque procuro um livro. Dentro do estabelecimento, vejo apenas duas pessoas. Um rapaz que procurava alguma coisa, em silêncio e a atendente, que falava a telefone. Ouço a mesma coisa que ouvi quando passei pela recepcionista da agência e ignoro. Procuro meu livro. Sessão de Literatura Estrangeira “Livros Organizados pelo sobrenome do autor” diz a placa que leio tão rapido, que mal percebo. Olho rapidamente os nomes que constam na capa. A, B, C…. K, Kundera. Procuro “Risíveis Amores” e encontro. Sorrio. Abro a capa e leio o preço. Perfeito.
Sigo pro balcão, a atendente me vê e diz ao telefone (de maneira que consigo ver): “Te ligo depois, tchau.”
Entrego o livro sem falar uma palavra. Ela abre a capa e confirma o preço, sem perguntar ou dizer qualquer outra coisa.
O rapaz que lá estava também, se aproxima do balcão logo em seguida. Ele fala alguma coisa pra atendente. Ela responde. A conversa soa misteriosa pra mim, que não presto atenção nenhuma. Não me interessa.
Pago em dinheiro e agradeço: “obrigada, tchau!” com uma voz tão inaudivel pra mim, que me pergunto se ela conseguiu ouvir. Ela sorri e diz obrigada.
Caminho mais algumas quadras e chego na lanchonete onde pretendia comer. Algumas pessoas conversam atrás do balcão, não presto atenção, de novo. O garçon me olha e dá um sorriso forçado, ele me conhece. Caminho até o salão de mesas, onde tem uma televisão ligada num volume baixo, mas suficiente pra eu ouvir, ainda que não compreenda ou preste atenção. O salão está vazio, exceto por dois rapazes que conversam em voz baixa o suficiente pra mesclarem-se ao som da televisão. Não diferencio de onde vem o que.
O garçon vem na minha direção. Ele só fala o necessário e, por me conhecer (na primeira vez, percebi que ele reparou nos meus aparelhos, mas nunca me perguntou nada) limita-se a me olhar. Faço o pedido, ele repete e diz que já traz.
Abro o livro e começo a lê-lo. Adoro Milan Kundera, até já citei um trecho dele por aqui…
Enquanto leio, os sons ambientes desaparecem, mergulho num estranho transe. No começo, logo que coloquei aparelhos, depois de 8 anos sem eles, achava difícimo não prestar atenção em qualquer coisa que fosse, os sons me cansavam e irritavam, mas eu insisti para chegar no estágio atual.
O garçon traz meu almoço, sem fazer qualquer som que eu consiga perceber, mas noto a presença dele por visão periférica, que aparentemente faz as vezes do meu instinto de alerta (função da audição).
Almoço em silêncio, ouvindo os rapazes conversarem junto com a televisão. Vez por outra, o barulho aumenta, já que passa algum carro, mas não o suficiente pra tirar a minha concentração no almoço ou no livro.
Termino de almoçar, pergunto pro garçon quanto deu a conta. Ele fala: Doze reais.
Vou ao caixa, tiro o cartão de Vale Refeição da bolsa e falo pro rapaz, que lá se encontra:
– Doze reais.
Ele repete com o sotaque carioca carregadissimo “doish?”. Eu repito: DOZE.
Mesmo assim, ele me entrega a maquina com “R$2,00” marcando e eu devolvo e falo mais alto e devagar: DO-ZE
Ele repete: Ah, doUze?
Seguro-me pra não rir. Ele devolve a máquina e eu digito a senha.
Saindo do local, o garçon fala algo olhando pra mim – enquanto eu não fixava os olhos na boca dele – que eu deduzo que seja algo tipo “obrigado, tchau” e falo a mesma coisa, suponho.
Faço o caminho inverso de volta pra agência pensando: Será que vale a pena relatar isso no blog?
Beijinhos
Lak
Lindo o texto… amei!!!
Carioca é difícil mesmo, eles falam uma “língua” diferente demais da nossa. Depois pede para um falar isqueiro e chiqueiro, é a coisa mais engraçada.
hehehehe
Beijocas
Vivi, sou carioca. Meus pais tem sotaque até hoje. Tô acostumada hihihihi
Olá lak,
Belo post! Parabéns peloa forma com que você escreveu. Fez com que um filme fosse produzido na minha mente imaginando este trajeto de 30 minutos!
Bjus!
A intenção era essa! hihihihi
Beijo enorme
Sim, vale a pena! Eu gosto muito desses relatos 🙂 É bom pra vc ter saudade do tempo que te convidei pra almoçar comigo… 😛
Mas heim? Vc me convidou pra almoçar? Mentiiiiraaaa huhuahau eu sou facinha, tá?
ai como eu queria ser surdo pra sotaque carioca!!! 😀
o que perturba nesses relatos pra mim é sempre a autenticidade, Lak… custa acreditar que pode ser assim, que as pessoas podem naturalizar tanto a falta/limitação de um sentido… qdo eu vejo os cegos tocarem uma escultura por exemplo… é difícil eu aceitar que possam tirar disso um percepção estética ampliada… é difícil acreditar que fazem isso dentro de uma proposta estética autônoma e coerente!!!… é menos uma perplexidade do que uma indignação!… esse “não é possível” – eu sei – é só um desdobramento cínico do “não, vcs NÃO PODEM!”… saber que podem e aceitar que podem são coisas que andam descompassadas… não é fácil sincronizar! 😐
A capacidade de sobrevivência do cérebro transcende qualquer limitação, Juca. Você não sabe como é possível, simplesmente porque nunca precisou saber. =P
Beijos
A-do-rei…Poxa, te conheci atraves do blog do Jairo, e to fã…poxa, agora mais um blog que irei viciar…rs. 😳 😯 😀
Oi, Gislaine. Bem vinda ao blog. Amigos dos Jairo são meus amigos hihihi
Grande beijo
não!… é pior! rs… eu SEI que é possível, Lak… mas não é fácil aceitar!… a eficácia do preconceito é que ele sempre tá pra além da razão, né…
Não acredito em preconceito que não possa ser minimizado ou aniquilado pelo conhecimento, Juquinha.
gosto desse otimismo, Lak! 😉 (eu quase acredito nisso tb…)
Não é otimismo. Depois do conhecimento, não pode ser mais classificado como preconceito. Vira intolerância mesmo hahahahaha
é assim: enquanto as pessoas “não precisarem saber” vai ter preconceito!… pode ser minimizado, tb acho… não acho que pode ser aniquilado!… tem um “lado saudável” do preconceito tb: a persistência de distanciamentos enriquece o mundo de soluções!… (apedreje o Lévi-Strauss que ele é quem disse isso… eu só concordo! 😀 )
Nesse caso, vc tá fazendo o que aqui no blog, criatura? =P
Eu como boa autora de contos que sou adorei a descrição, consegui realmente me ver do seu lado acompanhando tudinho.
Fofa!! Ouviu os barulhinhos descritos tb? hihihi
Lak quando eu era deficiente auditiva la no japao ,digo nao me mate mas pense bem se vc nao manja 100% um idioma pode aprender a nao ouvir (certo?) ja falo nao fique com odio de mim nao estou glorificando nada nem niguem mas so usando a expressao. 😎 Entao la na terra dos japas eu andava pela rua e durante quarteiroes e quarteiros parecia uma cidade deserta ,sem barulho algum e muitas e muitas vezes eu senti isso “mergulho num estranho transe” acho que chamamos de concentracao .
bjs 😈
e quando esatva numa loja ja depois de muitos anos por la o idioma ja quase dominado com a cara de paraense um japones vem falar com voce GRITANDO eu respondia muito baixo :- Pode falar baixo pois mesmo que nao entendesse o idioma nao sou surda. (nao sei falar deficiente auditiva em japones)
me pergunto :-sera que deveria ter escrito isso no blog ???? 😳
Rikita
você é otima!
Te adoro
Beijos
Lakinha pior que eu ouvi kkkkkkkkkkkkkk. Você precisa ver quando eu leio livros, eu mergulho de tal maneira na história que dependendo do momento eu paro de respirar ou coração acelera kkkk é bizarissimo, eu vejo e ouço tudo que está descrito hahahaha
O sonho de todo escritor, ter um leitor como você….
AMEI, AMEI!!! Sabe pq Lak???
Pq isso é típico uma rotina de quem é surda. O som do dia-a-dia acaba entrando na mente como algo rotineiro ainda que não se saiba exatamente como é aquele som. E nada melhor do que o silêncio quando queremos de fato. As vezes passo o dia inteiro sem falar com ninguem mas compreendi tudo ao redor.
Hoje mesmo passei por uma situação que me fez refletir algo do tipo que vc falou: todos os dias eu desco com a minha cachorrinha (2, 3x por dia). Daí sempre que eu volto eu aceno pro porteiro pra ele abrir a porta da área de serviço (para os caes não circularem areas em comuns com os moradores). Só que as vezes eu aceno, e e ele não me viu. Daí qd vou abrir o portão: Fechado. Aí toco o interno. Eu escuto um ‘prim lim prim lim’ e de repente muda pra uma voz. Aí eu falo ‘abre, por favor’. Aí abre o portão e surge outra voz e eu digo ‘abri’. Depois fui parar pra pensar. Em nenhum momento eu tinha entendido exatamente o que o porteiro falou. Mas eu deduzo. E sei que ele deve ter dito
1) ‘portaria falando’
aí eu falei: ‘abre por favor’.
2) abriu??
abriu, obrigada.
Conclusão: a dedução faz parte da minha vida diária. Ou vai dizer que vc nunca respondeu algo sem ter certeza do que tinha ouvido/lido os lábios???
😛
Sempre, Ma… To sempre deduzindo coisas… Já me meti numas roubadas por isso, mas geralmente acerto! Hahaha
Você escreve bem, prende a atenção sem perceber vamos lendo até o final e é legal.
Também curto esses momentos de transe, como ouço bem com o aparelho eu as vezes desligo e fico na minha.
Parece que estou em um mundo aparte, gosto de fazer isso no ônibus quando tem um grupo de adolescentes falando alto e rindo, ou uma criança chorando a pleno pulmão!
Cachorro latindo então é o máximo, ficam quietos na hora!
Quando entro no quarto e meu marido já está dormindo e roncando…. desligo o aparelho e durmo em paz!
Já sofri muito quando comecei a perder a audição ou quando percebo que piorou mais um pouco, mas fui abençoada de ter uma perda gradativa, deu para ir se acostumando.
Ainda tenho muito medo de perder tudo, de nem o AASI adiantar, mas procuro não pensar nisso e curtir minhas músicas, conversar pelos cotovelos, treinar leitura labial e me informar sobre implante coclear.
Ah, e obrigada pela informação do exame médico para tirar carta, não gostei muito mas vá lá!
Se você não perder a memória auditiva, o AASI e/ou o implante sempre vão adiantar, relaxa! Desculpa te desanimar com o exame, mas pelo menos você já vai preparada… E vai que você nem precisa dele… Não desanima. E, precisando, você tem um ombro amigo por aqui… Beijo
não me entenda(m) mal!!! rs… o “lado saudável” do preconceito só acontece em escala interétnica (cultural) e não pessoal!… na verdade eu tô metendo o que o Lévi-Strauss disse numa bitola diferente (ele falava em “afastamentos diferenciais” entre as culturas, coisa que a globalização vai aos poucos dissolvendo)… como os problemas vão parecer cada vez mais iguais pra todos, as soluções tendem a ser menos criativas!… acho exagero imaginar uma “cultura de surdos” mas tb não dá pra minimizar o afastamento (outros problemas, outras soluções)…
Enfin, chèrie:
1o. tô aqui pq como A-B-O-M-I-N-O msn e chats em geral, me pareceu um jeito legal de conversar com vc! 🙂 (coisa que faz tempo venho querendo, vc sabe!)
2o. gosto de me surpreender com perspectivas diferentes das minhas… (gosto muito de descobrir e encarar meus preconceitos!)
3o. não tenho muito pudor de falar bobagens! 😛 (mas ajuda se me explicam a bobagem que eu falei rs)
bom… talvez te desse outra idéia pra post pq “não precisar saber” É O PONTO, Lak… não sou surdo, não tenho ninguém surdo na família, não tenho nenhum amigo surdo… não preciso saber! (e o que eu sei é básico, razão abstrata de ouvinte!)… então assim: acho que só uma experiência mesmo consegue dar alguma concretude pra razão e daí diminuir de fato o preconceito… tô falando de alguma coisa parecida com essa:
http://www.youtube.com/watch?v=bgxS7mTNxzU
claro que não vai transformar a vida real num paraíso de aceitação… mas é mesmo uma experiência impactante e queria saber o que vc acha… sinceramente, eu acho que devia ser um programa oficial nas escolas!… bobagem minha de novo? 😐
Juca, preconceito só é legal, quando a vítima não é você.
E os sinalizados acreditam em Cultura Surda. Se você der busca na net, acha informações sobre isso. Não explico eu, porque não posso falar com propriedade de algo que desconheço. Mas que existe, existe.
Persperctivas diferentes é sempre legal, contanto que haja espaço pra diálogo. Num acho nem um pouco legal a perspectiva de gente que bate o pé e não respeita o meu ponto de vista, ainda que não aceite. =P
O fato de você não ser surdo – creia, só uma parcela dos leitores daqui compartilha essa deficiência – não te impede de ser curioso. Adoro ler sobre cultura muçulmana e sigo a fé hindu. Ter curiosidade sobre algo não me obriga a vivenciá-lo, ué. Curiosidade é curiosidade….
Não vou poder comentar o video, porque não tem legenda. Fico devendo, tá?
E, ainda que o mundo esteja a bilhões de anos luz da plena igualdade, não significa que a gente não possa almejar isso desde agora, né?
Beijão
Eu me identifiquei muito com essa situação “almoço”. Perfeito!
=P
Você também se faz de surda, de vez em quando? hihihi
“preconceito só é legal, quando a vítima não é você.”
e não foi exatamente isso que eu escrevi??? 😡
“cultura surda” é um exagero ou uma licença conceitual… o maior traço “diacrítico” de uma cultura é a língua (mas não é o único)… e a “Libras” é uma língua circunscrita numa realidade cultural específica (“brasilidade”, como a própria abreviatura assume)… claro que a gente pode falar numa “cultura surda” então mas de um jeito parecido como se falaria de uma “cultura do esperanto”… em todo caso, nunca existiu isolamento cultural, né… o problema é que agora o mundo pressente cada vez mais o perfil de uma “monocultura”…
o vídeo de fato propõe vivenciar situações limitantes… claro que não imagino que isso tenha que ser imposto aos alunos, Lak… uma coisa é saber que “é possível que eles leiam lábios ao ponto de distinguir sotaques” outra coisa é experimentar (mesmo por simulação) a realidade e desenvolver – desde agora – sensibilidade suficiente pra ACEITAR que “eles podem!”… e no final das contas informação e experimentação não são coisas que se opõem, né…
esqueci o “detalhe” da legenda… 😐 … não é fácil acostumar… quando irritar demais, explique (por favor!) 😳
outros beijos!!!
Sim, foi o que você disse, eu apenas repeti.
Mudança de percepção é uma arte, mas também é a chave do sucesso, anjo.
Podexá, que não me irrita. Quase todo mundo esquece da legenda. Mas ela é absolutamente necessária.
Beijos
Lak, que texto delicioso, sua forma de narrar. Você já pensou em escrever uma biografia com a sua percepção do mundo, afinal para mim é enegmático como vocês vivem sem ouvir, sou um ser totalmente auditivo, me facino pelo seu mundo, pois toda vez que leio seu blog ou seus coments no blog do Jairo tento imaginar a sua relação com o mundo.
No fundo sinto uma pontinha de “inveja” as vezes gostaria de por o mundo na tecla mudo e me concentrar nos meus pensamentos e nas minhas leituras.
Beijos 😀
Não acho que teria história suficiente pra um livro, mas obrigada pelo elogio…
É, tem horas que dá pra simplesmente me concentrar em outras cosisas e esquecer o mundo. Vantagens e desvantagens de não ouvir.
Beijinhos
Lak, vc tem um troço indispensável para os “bons”, talento. Comecei a ler esse texto e ele não levava a lugar nenhum ahahhahhaha.. mas, é de um sabor tão estonteante que não consegui parar e fui até o fim… Menina, vc tá bombando!!! E me orgulho por isso… adorei, adorei ter “almoçado” contigo, em silêncio… vc promoveu uma experiência inédite para a maioria dos seus leitores, acredito… bom demais. 🙂
Mas sabe que, ninguém notou mas… Eu tive que me colocar nos olhos de vocês, pra conseguir fazer vocês ouvirem com os meus ouvidos. É dificil também, pra quem não ouve há 22 anos, prestar atenção em coisas que normalmente, a gente ignora por hábito… Normalmente, eu não teria prestado tanta atenção nos sons, pra poder descrevê-los…
Beijinhos
Muito bom o texto, bem gostoso de se ler
Faltou foto, né?