O luto decorrente da deficiência auditiva
Vez ou outra, falo de algum amigo aqui, porque eu realmente tenho muitos (cada um mais querido que o outro) e porque eles merecem.
Mas certamente, uma amiga tem um lugar muito especial no meu coração, a KK, e já falei dela algumas vezes aqui.
KK, ou Kali, é praticamente uma irmã de pais diferentes. Somos amigas desde que ela estava na barriga da mãe dela (sério, tem foto minha ainda bebê novinha abraçando a barriga de grávida da Lu, mãe da KK). E crescemos juntas até os meus 6 anos, quando vim pra São Paulo e nossa convivência diminuiu bastante, mas o carinho não.
Ela me conhece desde antes de eu perder a audição e viu em tempo real toda a mudança radical dessa surdez overnight que me ocorreu. Passamos pela adolescência, primeiro namorado, faculdade, viagens, meu casamento, juntas. Sempre nos correspondemos, desde as cartas via correio que levavam décadas até bate-papos em tempo real e muitas conversas por SMS sábado de madrugada (teve um que até, coincidentemente, a gente estava bebendo o mesmo vinho hahaha eu em Sampa, ela no Rio, eu com o marido, ela com o namorado).
Enfim, ela é psicóloga clínica e eu pedi para ela me agraciar o blog com um texto sobre luto. Sim, LUTO, porque eu adoro falar de coisas boas, mas não posso negar que as mazelas da vida também existem. O importante é saber conviver com uma perda, seja ela qual for.
Espero que gostem do texto, porque foi escrito por uma das pessoas que mais amo nesse mundo.
Há algumas semanas nós conversávamos sobre essa questão do luto relacionado ao adoecimento e/ou perda de funções e você sugeriu que eu escrevesse um texto sobre isso para o seu blog. As demandas do trabalho não me deixaram tempo para pensar em algo assim, mas hoje consegui. Curiosamente consigo tempo para pensar no que escrever sobre luto no exato momento em que me preparo para estar ao seu lado em mais um dos grandes momentos da sua vida (das nossas vidas, é o meu sentimento). Em um primeiro momento, achei que não era hora para falar disso, depois acabei achando que pode ser sim, bastante pertinente… Vamos comigo que eu te explico:
Lembro-me que em nossa conversa surgiu a dúvida se o luto relacionado à perda de alguém se aproximaria do luto relacionado à perda da saúde (ou de funções fisiológicas, sensoriais ou motoras) ou ainda, se seriam coisas completamente diferentes. Bom, a definição que considero mais clara sobre o assunto é a seguinte: “luto é uma reação normal e esperada diante do rompimento de uma relação significativa – que pode ser por morte, divórcio, aposentadoria, mudanças forçadas (incluindo o adoecimento) – e que tem impacto sobre o indivíduo e a família, muitas vezes a longo prazo, e até mesmo transgeracional. Esta reação deve ser entendida como um processo, e não como um estado, pois envolve mudanças e exige da pessoa uma reorganização interna e externa”. Até aqui, ponto para quem apostou que são sentimentos beeeem próximos.
A argumentação de que são situações completamente diferentes pode discursar sobre o fato de que quando se perde uma pessoa querida, não existe a possibilidade de ela voltar (embora sempre tenhamos essa esperançazinha escondida lá no fundo do nosso coração); enquanto no caso do adoecimento ou perda funcional, há maneiras de se adaptar e, em alguns casos, recuperar as funções perdidas (ainda que parcialmente). Eu cheguei a pensar assim também, mas quando comecei a estudar mais profundamente o assunto, acabei descobrindo que perda é perda, não dá pra comparar! A diferença maior está no reconhecimento social deste sofrimento. No caso da perda de alguma função fisiológica, sensorial ou motora, a dificuldade desse processo de recuperação e restituição é comumente subestimada. A doença ataca o corpo e a auto-estima e quando ficamos doentes, nos deparamos com o fato de que somos mortais. Isso causa desamparo e traz à tona sentimentos de fragilidade, vulnerabilidade e dependência. Se o simples fato de adoecer já gera transformações, a perda funcional, então, implica transformações ainda maiores, o que pode gerar uma desestabilização dos mecanismos de adaptação. Quando vamos organizar grupos terapêuticos, optamos por diferenciar esses tipos de perdas (morte, adoecimento, perda funcional, etc) como estratégia de evitar maiores sofrimentos, uma vez que as próprias participantes poderiam tender a diminuir seu sofrimento com a perda de um membro frente ao sofrimento de uma mãe que perdeu seu filho, por exemplo.
Um dos fatores também muito freqüentes em ambos processo é a sensação de solidão, de não ter qualquer pessoa ao seu redor que possa compreender completamente seu sofrimento. De fato, o esforço em reconstruir identidade e papel social, adotar novas regras e qualidades, é uma tensão constante em si mesmo e leva à sensação de solidão intensa.
Assim como na perda de alguém que se ama, cada pessoa tem uma experiência própria diante do adoecimento, mas é possível observar algumas reações comuns à maioria das pessoas. Dois autores são referências nesse assunto: Colin Murray Parkes e Elizabeth Kübler-Ross e abordam as perdas de forma bem parecida. Kübler-Ross desenvolveu uma teoria que fala de 5 estágios (bastante conhecidos) relacionados ao sofrimento da perda: Negação e/ou Isolamento; Raiva; Barganha; Depressão e Aceitação.
É nesse momento que chega a certeza de que esse assunto podia estar presente nessa fase de preparação para a sua cirurgia: o mais encantador é que a fase da aceitação não significa chegar à conclusão de que não há mais nada a fazer, mas sim o reconhecimento do cenário que se apresenta, e o que se poderá fazer em relação a isso. No seu caso, eu acho que esse é o seu estágio da aceitação e, depois de aceitar e olhar para você e a sua vida da maneira como ela está, foi possível optar por fazer o implante e começar a reconstruir uma nova relação com o mundo. Só que dessa vez, por livre e espontânea vontade!!!!!
E que venha esse tal de implante!!!!!!
Beijinhos,
Lak
Que texto bom, claro, explicativo, consolador.
KK sabe das coisas!
Para mim que há muitos anos vivi o luto da perda da audição e que agora tenho minha irmã na UTI foi muito bom ler e refletir. Peço autorização para colocar o link no Blog SULP porque sei que será útil a muita gente.
E continuamos esperando a chegada das suas anteninhas. Beijos Sô
Hehehe pois é, ela tem bastante experiencia na área, por isso pedi!
Claro que pode, Sô, nem precisava pedir, né? Beijinhos
Oi Lak, gostei bastante do texto. É difícil chegar à fase de aceitação, mas quando acontece percebemos a enorme quantidade de recursos que temos para superar a dor. Causa surpresa em nós mesmos!
Enfim, passei por aqui pra dizer que a Alessia escreveu um post especial pra você no blog dela.
Bjs
Erika
Hahaha eu amei de paixão o post lá. Obrigada de coração, às duas!!
Beijos
Sabe o que percebi? Você tem amigos de todas as áreas e estilos 🙂 Por isso o blog fica todo rico de informações, além da sua imensa cultura colocada aqui. 🙂
Este texto tb me fez refletir sobre a perda da minha avó que se foi tem um mês e pouquinho. O que me conforta é sentir saudades.
Qt ao nosso caso, o que conforta é ACEITAÇÃO!!! 😀
Bjs
É que sou um bicho estranho, todo mundo fica curioso hehehehe
Pois é, esse texto veio em hora importante pra muita gente!! Melhoras aí na saudade da vó!!
Beijocas
Olá Lak!
Que coisa mais sensacional é a vida! Eu sou pediatra da prima da Alessia e seguidora do blog dela, e procurei o seu!
Confesso que chorei ao ver o video da violinista e preciso muito lhe dizer uma coisa:
Você ouve muito mais do que imagina! Eu acredito que a audição que é processada no coração é a única real pois é límpida e não pode ser comprometida pelos sons exteriores. Vai direto de um coração a outro!
Lak, as suas fotos e as suas postagens são de rasgar o coração!
Mil beijos!
Hoje você ganhou mais uma fã e torcedora!
Zuleid
Uia, bem vinda ao blog!! Concordo plenamente que ouvir depende muitissimo do coração. Reparou nos aparelhos em forma de coração, ali ilustrando o blog? Porque ouvir também é sentir… Mas eu demorei pra entender isso e sei que nem todo mundo consegue encarar bem, portanto, no que eu puder ajudar, tô aqui pra isso!
Que bom que gostou do blog. Volte e comente o quanto quiser, toda a ajuda e palpite é bem vindo. Beijos
Muito interessante, eu sentí a solidao do mesmo jeito que a sua amiga o explica. Isso foi o que eu mais sofrí qdo perdí a minha audiçao por completo.
Eu nao entendi pq vc teve que adiar a cirugía más saiba que estou torcendo por vc. Qdo vai ser?
besitos
Olivia, foi porque o convênio – que pagará a cirurgia – alega que não recebeu a documentação a tempo de autorizá-la pra data marcada. O hospital diz que mandou faz tempo, mas o convênio pediu mais coisas. Burocracia pura. Fiquei triste pra caramba, mas não tem nada a fazer, a não ser esperar o convênio autorizar e o hospital marcar a data.
Beijocas
Gostei!! «By the way», a sua amiga tem blog próprio? Ou não quer arranjar uma coluninha permanente para ela aqui??
Gostei porque sim, porque gostei da explicação, porque gostei dela ser sua amiga e você dela (é bom ter amigos desses, irmãos de coração), e ainda porque é também parte do tema que estou a tratar na minha dissertação de mestrado (Impacto da Surdez Adquirida no Adulto Jovem)…
UM abraço, «estrelinha»!! 🙂
Ela não tem não, mas acho que adoraria a idéia da coluna! Amanhã ela vem pra Sampa e falarei disso com ela. Adorei a dica!!
No que você precisar e ajuda pra dissertação e estiver ao meu alcance, avise!
Beijos
Engraçado, nunca tinha feito essa relação, mas lendo o texto da KK (porreta ela, hein?), voltei no tempo e percebi uma sensação comum que tive quando perdi minha filha e quando tinha crises de pânico: solidão. Meu lado racional me diz que a ninguém é dado compreender ou ter a real dimensão do sofrimento alheio, mas inconscientemente eu cobrava isto das pessoas. O resultado era apenas mais sofrimento. No tocante a minha filha, ainda tenho muito a percorrer no quesito aceitação. Belo post, beijinho pras duas.
Eu sempre faço essa relação, porque perda sempre nos desconserta, mesmo que seja perda de saúde…. Acho que tudo está ligado ao mesmo sentimento, embora deva ser trabalhado de formas diferentes, né?
Quanto a sua filha, esse tipo de dor, eu não acho que cicatrize, você apenas aprende a viver com a dor, mais cedo ou mais tarde. Ela se torna companheira de vida – a dor – portanto, a gente tem que saber lidar com ela.
Beijinhos
Lak, só pra reafirmar o valor do blog: um grande amigo perdeu recente e abruptamente o filho de 16 anos. Estamos todos vivendo esse luto decorrente da morte. O texto da KK me fez compreender melhor o que se passa com o pai, comigo e todas as pessoas que – mais ou menos próximas, cada um ao seu modo – estão vivendo essa dor. Compreender é sempre um bom caminho para aceitar, você não acha? Beijo.
Muito legal mesmo o que a Kali escreveu!… aceitar é ficar disposto… até porque ficar prostrado – como se diz – não é mesmo uma alternativa viável…
beijos!!!
Lalazita, vou me utilizar desse espaço para falar com as pessoa que comentaram o texto:
Fiquei muito emocionada em saber que o que eu escrevi fez sentido para alguns de vocês! Tendo a Lak como amiga-irmã, é muito difícil escrever a achar que está bom! Essa moça nasceu assim, com o dom de escrever e encantar! 😀
Sinto que esse assunto sempre traz à tona sentimentos muuuito guardados lá no fundo do baú… lidar com perda realmente não é algo muito fácil, ainda mais em um mundo que nos diz que temos sempre que ganhar, ganhar, ganhar! Ah, e sermos felizes o tempo todo, como se vivêssemos em comercial de pasta de dente! rsrsrsrs.
Bom, o fato é que acompanho sempre o blog e estou à disposição para conversarmos sobre os assuntos mais diversos! Alguém sugeriu uma coluna, não sei se me sinto “pronta” pra ter uma, mas podemos pensar em uns posts eventuais… Quem sabe né, dona Lalazita?
Beijos,
Sinta-se em casa, como vc se sente na “nossa” casa haha
Bejos
Lak querida, nao so espere… tambem fique encima. Esta burocracia procura as pessoas desistirem e se cansarem. Eu passei um ano para conseguir a cirugía. Nao desista nunca!
Não vou desistir. Sexta, quando acaba o prazo de 10 dias, vou la encher o saco!
Fica tranquila, que quero MUITO o IC!
Beijos