A linguagem do tato – parte 3
**Soyez Patient, petit bonhomme!! (Tenha paciencia, queridinho), que esse texto é longo!!
Algumas coisas que a gente faz, sem propósito nenhum, podem gerar resultados jamais esperados.
Quando eu era criança, no local onde meus pais trabalhavam, havia uma moça que sofria de nanismo. Ela era o amor da minha vida, porque eu amava de paixão a companhia de uma pessoa grande, do meu tamanho. O destino levou-a embora da minha vida, mas o carinho sempre permaneceu.
E eu, na minha ingenuidade infantil, jamais via uma pessoa com deficiência como alguém excluído da sociedade. Meus pais, mesmo antes de eu perder a audição, nunca me passaram essa imagem de preconceito que a sociedade teima em manter.
Falei pro meu pai recentemente, num dia que almoçamos juntos, que ele tinha me dado uma das mais importantes lições de vida e eu não sabia sequer se ele tinha noção disso.
Quando perdi a audição e meus pais transferiram a escola/consultório deles pra perto de casa (porque onde era anteriormente dificultava pra eu falar com eles, se precisasse, já que a falta de audição me impedia de usar o telefone) acabei tendo contato com o grupo de deficientes visuais que aprendiam massagem oriental com meu pai. A convivência com eles foi crucial pra afirmar a convicção – propensa a ser bastante frágil – de que uma pessoa com deficiência pode e deve viver perfeitamente inclusa na sociedade.
Meu pai, na hora, não conseguiu emitir nenhum parecer, mas pude ler a expressão no rosto dele de satisfação, de que tudo tinha dado certo.
E, como não poderia deixar de ser, pedi pra ele falar como foi isso, sob a ótica dele:
Em minha caminhada pela formação de Massoterapeutas, atividade iniciada no Rio de Janeiro, e implementada em São Paulo a partir de 1980, teve um componente muito importante e significativo, que durou doze anos na Associação de Massagem Oriental – AMOR, com a participação de alunos DeVis (deficientes visuais).
O que de início parecia simples, que era compor uma turma com um ou dois alunos DeVis, e que logo eram auxiliados pelos demais alunos, e que com o decorrer dos meses se mostravam plenamente integrados e muito contribuíam, com sua sensibilidade e tenacidade, no objetivo de conhecer o ser humano pelo toque. Mostrou-se um desafio quando decidimos montar uma turma composta exclusivamente de alunos que não viam com os olhos. Friso aqui a questão da visão pelo tato, assunto abordado desde a antiguidade pelos estudiosos da Massagem, que sugerem aos iniciantes a prática dos toques com os olhos fechados.
E é neste ponto que a diferença aparece. Fechar os olhos não nos garante plena visão tátil, pois o costume da visão ocular nos dificulta a clareza da visão pelo tato. Tentamos “traduzir” a percepção do toque em imagem visual, e neste esforço diminuímos nossa observação do que realmente está sendo informado pela sensibilidade da dor, pelo paciente, e principalmente pela percepção do local tocado, pelo massoterapeuta.
Aprendi muito no convívio com os alunos DeVis. A dificuldade inicial na relação com eles estava associada ao desconhecimento da própria relação com pessoas especiais. Nossa sociedade vivia nos anos 80 e 90, a admiração pelo esforço natural de inclusão dessas pessoas nas sociedades mais antigas, como a da Europa e Oriente, e a iniciativa nascente de certas pessoas ou instituições que lidavam com as dificuldades da inclusão em nosso país.
É uma vantagem inequívoca a percepção tátil do Deficiente Visual, pois ele treina a cada dia, a compreensão e a avaliação do meio ambiente e dos seres humanos, pelo tato.
Mestres Indianos como o Osho (Bhagwan Rajneesh) estimam que cerca de 70% de nossa memória é composta de imagens, e que os demais 30% ficam divididos pelo tato, audição, olfato e o paladar.
Eu vivia nesta época a experiência difícil de lidar com a deficiência auditiva repentina de minha segunda filha, Lakshmi, que amanheceu um belo dia com uma perda quase completa da audição bilateral.
Iniciávamos o treinamento, com um professor por turma e um auxiliar para cada quatro DeVis. A seqüencia das matérias era igual a das demais turmas, sendo que as partes práticas eram mais detalhadas, com os auxiliares observando e corrigindo as duas duplas, enquanto o professor descrevia minuciosamente a manobra, a respiração adequada, a postura do terapeuta, o relaxamento, a entrega do paciente e a percepção desejada na leitura do corpo do paciente, pelo terapeuta.
Ao mesmo tempo que eu conhecia um pouco mais da relação e da realidade vivida por cada aluno DeVis, eu buscava o paralelo do grupo de deficientes auditivos, onde Lakshmi se incluía. Pude conhecer na época um grupo de adolescentes, deficientes auditivos, que freqüentavam o DERDIC (órgão da PUC de São Paulo) que vivia uma experiência de teatro e música com a participação desses jovens, trabalho interessante que lidava principalmente com nascidos surdos.
Fomos aprendendo com o tempo que embora a sensibilidade e o adestramento do DeVis devessem espontaneamente se manifestar, não era o que acontecia de início, devido ao grande afastamento social que na época importunava esses grupos de pessoas. Acrescentamos um semestre ao curso, para estas turmas, e desse modo passamos a explorar a capacidade espacial dos alunos, percebendo a dificuldade da interação corporal entre eles nas práticas de massagem.
Vencida esta etapa inicial, de caráter social, muitos se desenvolviam com tamanha velocidade que nos demos por satisfeitos pelo prolongamento do período de formação para estes profissionais. O estudo da massagem pela Associação de Massagem Oriental – AMOR estava dando passos largos na capacitação inovadora de profissionais especiais na arte da Massagem.
Inovadora no Brasil, pois que na ocasião nos demos conta de que no Japão, desde a década de 1960, já era garantida pelo governo, a formação de massagistas Deficientes Visuais.
Com o passar do tempo e a aceitação da condição de deficiente auditiva que minha filha vivia, fui aprendendo com ela a entender que a leitura labial, a estimulação na correção da fala, que as fonoaudiólogas ajudaram muito, e a determinação que é a grande característica da Lakshmi, fizeram dela a pessoa completa que se desenvolveu.
E foi na década de 90 que fomos procurados por uma escola japonesa que instalou-se em São Paulo, Instituto Oniki, em Santana, que viria a integrar os nossos deficientes visuais nesta nobre atividade profissional.
Penso que tanto para os Deficientes Visuais, quanto para os Auditivos, há hoje uma realidade. Ainda insipiente, porém já provida de lei na aceitação profissional, e ainda carente na compreensão da integração social que essas pessoas continuam necessitando.
Para poder desenvolver a sociedade cada cidadão precisa compreender a importância da inclusão, e dos passos na educação, que precisam ser vividos desde a infância, nas escolas
Armando Austregésilo
Professor Mestre
asbaustregesilo@gmail.com
cel: 7884-1520
Esse texto dele me lembrou muito um texto de Eduardo Galeano, chamado A Função da Arte
“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Me ajuda a olhar!“
Beijinhos,
Lak
p.s. depois em casa dou uma editada no texto e coloco uma foto nossa. Tô sem nenhuma à disposição aqui na agência.
acho muito legal essa idéia de que os sentidos concorrem entre si, Lak… difícil é perceber essa realidade pq a gente tá sempre acostumado com a integração deles, né… mas já aconteceu de eu despertar na madrugada e logo em seguida por causa do silêncio e do escuro acabar me assustando com sons que eu não tive tempo ainda de atinar o sentido (tipo, folhas que o vento arrasta, alvenaria que estala depois da dilatação no calor do dia, gato no telhado, etc)… então isso eu aceito bem: deficientes visuais desempenhando funções táteis com mais eficiência… já essa capacidade visual que os deficientes auditivos têm de fazer leitura labial de sotaques… pra mim é espantoso!… agora, fico PERPLEXO é qdo o próprio sentido limitado acaba encontrando outros meios pra se expressar… exemplo clássico:
http://www.youtube.com/watch?v=Efme4qTSRHU&feature=related
vai sem legenda, mas é o seguinte… o pai da guria não acredita na capacidade do Beethoven e compra um piano bacana que ele poderia testar a convite da filha sob condição de que ninguém estaria por perto no momento… então ele vai e toca a “Sonata ao luar”, a guria não se contém, se mostra e ele fica furioso… sai compreendendo e acusando que “queriam uma prova” e que “é horrível roubarem dele dessa forma seus mais profundos sentimentos”… a guria corre atrás dele e o pai lembra que ele está surdo e não pode escutá-la…
o que me deixa perplexo é ver que o cara foi capaz de superar (definitivamente na 9a sinfonia) a relação da música com a contigência do som… claro que ele tinha a “memória dos sons” mas a coisa só se explica se ele “compensasse” a limitação da física sonora com uma hipertrofia do sentimento que ele acabava atribuindo pra cada nota… não é fácil pra um ouvinte aceitar (pra um surdo seria?) mas parece que a surdez acabou fazendo dele um músico melhor… é quase absurdo pra mim! 😐
mais beijos!!!
Por que é difícil compreender como pode ser possivel o sotaque na leitura labial? Sotaque é apenas posição específica dos labios e lingua, vogal (som) + consoante (barreira do som). Sotaque é o menor dos problemas. O que é mais dificil, por exemplo, saber a entonação da fala, se é uma pergunta ou uma esclamação (em português, nem tanto, mas em francês, uma pergunta sempre tem a entonação forçadamente pro final da frase), isso é um pouco mais complicado e, tem horas, que a gente acaba tendo que perguntar: “você afirmou ou perguntou?”.
A leitura labial é composta por 3 elementos: Leitura direta dos lábios e da posição da língua; leitura da expressão da face e um pouco de dedução lógica do sentido da conversa, porque nem sempre dá tempo de ler e assimilar cada letra do que se disse, mas se deduz pelo conjunto da idéia.
Logo, ao contrário do que você pensa, o sotaque é muito mais fácil de saber, do que o tom da frase dita.
No caso dos cegos, vc só acha mas fácil porque desde cedo, vive com o conceito de que cegos usam o tato. No caso dos surdos, cresceu com a visão estereotipada de que são aquelas pessoas engraçadinhas que falam por mímica o que, infelizmente, a mídia se força à exaustão pra manter bem marcada na mente de PFBs (pessoas físicas bobinhas)
o tom é mais difícil, isso eu entendo sim… mas identificar o sotaque exige uma atenção visual que pra um ouvinte só pode ser espantoso!… se alguém me perguntasse “é possível?”… eu diria que não!… é muita especialização visual… não dá!… agora eu sei que dá, é espantoso mas eu sei… se vc pesquisar por aí, a resposta acho que seria a mesma que a minha: “não dá!”…
qto aos cegos, vc tem razão… a gente associa com desenvolvimento do tato desde cedo… e um surdo compor alguma coisa baseado na memória auditiva… ok, vá lá… agora, compor a 9a sinfonia… só com o som passando ao plano secundário mesmo!… absurda realidade!
A gente não sabe o grau de surdez do Beethoven, pq não tinha audiometria na época dele. Vai que ele era surdo moderado…
eu tb não sei dizer se era surdez moderada… mas pensando no vídeo aí, se ele encosta o ouvido no piano e não escuta a voz da guria que se aproxima… pelo menos essa representação mostra ele como alguém com grau importante de surdez, né…
deixando isso de lado, Lak… eu tb tive uma experiência que me marcou (não sei até que ponto, mas como lembro até hj de detalhes, posso dizer que foi marcante)… eu tinha 5-6 anos e uma tia minha que eu gostava muito teve um AVC e de repente parou de falar e se locomover… ela passou a morar com a gente e pra mim aquilo era antes de tudo assustador no começo, né… depois fui acostumando mas foi a primeira experiência da minha vida com esse tipo de situação… eu tive medo mas acho que acabaram me convencendo que era uma situação temporária, que ela ia voltar logo ao normal… aí eu acompanhei o tratamento e essa convivência, numa idade em que o horizonte até então não tinha limites, foi instrutivo num grau que eu não sei estimar… ela nunca se recuperou e acabou morrendo poucos anos depois…
não por isso, pela experiência pessoal, mas eu acho sim que quanto antes uma pessoa conviva com situações parecidas, maior vai ser a naturalidade pra encarar o assunto… eu escuto às vezes um monte de pretextos pra ser contra a inclusão de alunos com alguma limitação nas mesmas turmas que os outros… fico indignado pq quase sempre lembram de situações extremas pra desqualificar um princípio que pode muito bem ser aplicado pra todas as outras situações! 😐 … e fico revoltado qdo essa recusa vem de pessoas esclarecidas! (já escutei assim: “a turma corre o risco de ficar atrasada pq vai ter que se sujeitar ao ritmo da criança com limitação”, leia-se: “meu filho vai ficar atrasado!”)… eu acho que a proposta escolar acabou sofrendo uma deturpação pq o desenvolvimento da “cidadania” tá cada vez mais perdendo espaço pro idéia de desempenho individual… tomara então que essas iniciativas de inclusão sejam assumidas pra valer daqui pra frente e não fiquem só na propaganda pedagógica sem estrutura adequada… senão vão acabar justificando mais indiferença ainda!
Mês passado fiz uma massagem feita por um DV em uma campanha. Foi uma delicia, super minucioso. Qd ele soube da minha deficiencia, ele fez o dobro de tempo de massagem! 🙂
Queria recomendar um filme… no qual esqueci o nome. Fala de um massagista cego no qual uma cliente se apaixona pela massagem, mas não sabia q ele era cego.. Daí ela faz de tudo para ele fazer uma cirurgia pra tentar reverter parte da visão. Daí o filme mostra que nós deficientes não queremos mudar como somos. Temos que aceitá-la.
Fico pensando se eu ouvisse bem, claramente as coisas, sem dificuldades nenhuma. Como seria?
Estranho.
Sei qual filme é. Com o Val Kilmer no papel do personagem DV, né? O nome tb me fugiu… Mas, esse filme é legal pra caramba. Gostei bastante.
“Fechar os olhos não nos garante plena visão tátil, pois o costume da visão ocular nos dificulta a clareza da visão pelo tato. Tentamos “traduzir” a percepção do toque em imagem visual, e neste esforço diminuímos nossa observação do que realmente está sendo informado pela sensibilidade da dor, pelo paciente, e principalmente pela percepção do local tocado, pelo massoterapeuta.” Pura verdade! Eu já fechei os olhos muitas vezes para me dedicar apenas ao toque, já tentei aprender a ler Braille (é muito difícil!), tentando imaginar como os DeVis tocam, sempre imagino como se fosse um super poder deles, algo bem aguçado (assim como a audição pra eles), de que eles percebem muitas coisas que a gente não percebe, enfim, eu VIAJO, rs. 🙂
Eu sou fã de Galeano! Eu me lembro desse texto porque fez o meu dia! (Assim como os outros textos dele) Impossível ler e ficar sem um sorriso na boca =)
Esse filme amor à segunda vista é lindo! Bem lembrado que ele era um massagista… Já viste “Ervilha às 6h30”? É um filme alemão e por causa do título, eu tive muita curiosidade de saber o porquê, rs. É um romance bem bonitinho =) Se tu quiser assistir, não posso estragar a surpresa… hohoho
Valeu a dica, Mari…
essa explicação sobre o tato, poderia ser traduzida na percepção da fala de quem usa a leitura labial. É inexplicavel como ela substitui com clareza a audição, mas nem todo mundo consegue dominá-la de fato…
Beijinhos