Anjos e Demônios
Você já reparou numa visão comum acerca dos PcD‘s (pessoas com deficiências, o termo atual de PNE – pessoas com necessidades especiais, PPD – pessoas portadoras de deficiências), que sempre falam de nós de duas formas: ou como um coitado digno de pena ou como um superherói malacabado, que não possui defeitos (além de ser deficiente e fazer… coisas, claro).
É um tal de falar: Coitadinho daquele cara, precisava de caridade.
Ou ainda: Eu tenho um amigo que não enxerga, mas brilha no escuro e sabe contar até 200 buzilhões sem respirar.
E, quando falam com a maior crença de que estão agradando: Ah, você é surda? Poxa, eu conheço a filha-do-irmão-da-cunhada-da-minha-vizinha que também não ouve, coitadinha, mas ela é uma santa de boazinha, não late e não morde, tenho certeza que você também é uma pessoa adorável, que nem ela.
Como a minha mãe, D. Eliane, me deu educação, eu não consigo mandar a pessoa ir se f*** com toda a naturalidade que eu gostaria, mas acho o fino da bossa ser julgada pelo caráter de outra pessoa que nem conheço e que, pior, a própria alma caridosa que me fala isso também não conhece, só porque a cóclea (leia-se, o caracol, parte do ouvido onde ficam as celulas nervosas que mandam as mensagens sonoras ao cérebro) dela funciona tão pessimamente quanto a minha.
Outro dia, bati boca com um amigo (ele lê o blog, vai me xingar em 200 dialetos élficos por dentro, mas sabe que eu ia falar disso aqui, pedi permissão), porque ele teve a infelicidade – jura de pés juntos que eu que entendi mal – de dizer que tinha outro amigo, também deficiente auditivo, que ao contrário de mim, é aloprado, grita, berra, faz escândalo e é atentado. Ao que, eu respondi:
– Peralá, mizifio, qual o problema dele ser surdo e mala? Surdez não é atestado de caráter (ou falta dele). Surdo pode ser legal ou chato, bonzinho ou malvado, tímido ou exibido, engraçado ou um carrasco. Somos tão humanos quanto qualquer pessoa e temos tanto direito a deslizes comportamentais que alguém sem deficiência nenhuma.
Ele disse que não foi isso que quis dizer e depois de eu xingá-lo com todos os emoticons de xingamento possíveis do MSN (sim, o debate foi por MSN, mas ele é meu amigo real, estudamos juntos nalguma série aí) ele teve a presença de espirito de dizer – sim, só sou amiga de gente realmente maravilhosa, fofa e legal – que apostava que eu falava isso pelo tanto de vezes que já tinha ouvido sanfonações do tipo.
O que acontece mesmo, é claro. Mas, pior do que tudo é que isso é usado como argumentação de reprovação ao comportamento falho, irritante e pentelho de um PcD, alegando que ele só piora a condição dele e de seus semelhantes.
Ora, somos “inválidos” que deveriam ser bonzinhos para passar quase invisivelmente pela vida ou “anjos” etéreos que não se podem deixar macular pelas falhas humanas? E ainda nos culpam do preconceito que sofremos?
Certa vez, meu amigo Arthur C. Grimm, psicólogo florianopolitano, falou algo maravilhoso no Orkut, a respeito daquela brasileira que mentiu sobre ser agredida por neonazistas, na Suiça, que é perfeitamente válido pros matrixianos:
O que não entra na cabeça de vocês é o seguinte:
SEMPRE vão existir c****** e erros vindas de grupos minoritários.
É um enorme equívoco nós acreditarmos que, para a Misoginia, a Xenofobia ou o Racismo desaparecerem, TODAS as mulheres, TODOS os negros e TODOS os estrangeiros precisam tornar-se pessoas “iluminadas”, perfeitas, que nunca cometem erros.
Exigir que as mulheres sejam perfeitas como condição para que elas não sejam vítimas do machismo é ser cúmplice do machismo.
Exigir que os negros sejam perfeitos como condição para que eles não sejam vítimas do racismo, é ser cúmplice do racismo
Exigir que @ brasileir@s nunca façam m**** como condição para que nenhum de nós seja vítima da xenofobia, é ser cúmplice do neo-nazismo.
Ela merece ser punida pelo crime que cometeu. Nada de passar mão na cabeça. Mas o que a gente não pode, NUNCA, é inverter a lógica de quem é realmente responsável pela discriminação e pela xenofobia.
Fazer isso é introjetar uma mentalidade escrava.
Pra mim, basta trocar a minoria de qualquer uma dessas sentenças e o preconceito específico por pessoas com deficiências e o preconceito com PcD’s que a argumentação dele se encaixa perfeitamente no que estou dizendo.
Meu amigo pode ter querido dizer outra coisa e eu ter entendido mal, mas são milhares de pessoas dizendo que quem tem deficiência deveria se comportar melhor, em vez de reclamar quando falam coisas ofensivas, que a gente acaba criando uma couraça que nos faz reclamar diante do mais inofensivo dos comentários. Mas não, não é a nossa postura resignada que acabaria com o preconceito. Não somos menos dignos de defeitos, malcriações e má vontade. Não é porque você tem uma limitação física e sensorial que tenha obrigação de ser perfeito em todos os outros quesitos. A deficiência não tira a humanidade de ninguém.
Somente, e enfatizo, somente quando o ser humano passar a respeitar uma pessoa com deficiência com o mesmo respeito que exige dela, é que poderemos conversar em pé de iguadade e um comentário inocente jamais será interpretado como uma exigência de bom comportamento completamente inadequada.
Até lá, a gente senta e sonha…
Beijinhos
Lak
p.s. pra quem estiver afim de uma verdadeira lição de vida – ainda que não tenha muito a ver com o post, mas emociona, clica aqui.
Lak, acho que estou virando sua tiete. Afinal sempre que passo por aqui tem algo interessante para eu ler e claro que eu quero comentar. Parabéns pelas colocações, eu não sou deficiênte na concepção da palavra, apesar de ter uma acentuada dificuldade de visão em um olho o outro é absolutamente normal. Mas o que mais me deixa doida são os rótulos que geram esse esteriótipo, afinal de contas minha profissão faz com que as pessoas pensem que sou mágica. Sou psicologa e canso de dizer aos outros que choro, sofro, tenho TPM. Quando eu dou uma resposta atravessada ou quando estou chateada, as pessoas falam – “Mas isso não pode acontecer com você, vc é psicologa”. Rótulos, independentes de quais sejam, fazem mal ao ser humano. beijos
Concordo plenamente. Rótulos não são exclusivos dos “matrixianos”, estão por toda parte. E incomodam muito sim! Ademais, o estereótipo resultante do rótulo vira uma cobrança insuportável. Ninguém quer ser julgado por nada, a não ser pelo que é e somos únicos. Isso que não se pode esquecer nunca!
Puuuxa, adorei o anjo 😛
Bobeiras à parte, concordo plenamente. Gente mala existe em qualquer lugar do mundo independente de condição física, social, de sexo, gênero ou cor. Assim como gente legal.
Beijinhos!
Olá Lak,
Conheci o seu blog ontem através do “Assim como você” do Jairo. Também tenho perda auditiva.
E sobre os rótulos, com certeza muitas pessoas acham que, por sermos PCD’s, somos bobos e aceitamos tudo que nos é falado ou acontece ao nosso redor. Mas o que acontece é justamente o contrário. Todos nós somos seres humanos e estamos condicionados a isso. A gente xinga, briga, erra, ama, acerta, etc…
Bjos e parabéns peo blog!
Oi, Edelson, seja bem vindo ao blog, tanto pra comentar, quanto pra contribuir com suas histórias, muito bem vindas.
Também tenho essa sensação, de que acham que eu sou uma bobinha sem opinião própria. As pessoas misturam tanto as deficiências, que chega a esse ponto, acha que sofremos de alguma limitação de raciocínio também ou que somos desprovidos de malícia, sei lá.
Mas, vamos que vamos, uma hora a gente consegue mudar essa visão acerca de nós!! Como diz o Jairo, do Assim Como Você, unidos venceremos haha
Beijos
So pra. Constar: TODO MUNDO sofre de estereotipagem, nao soh aqueles q tem uma diferenca fisica: aquele cara e nerd mas e legal, aquele eh policial mas eh gente boa. E enquanto a vida dessas pessoas nao eh tah incomodada pelo estereotipo, eles existem tanto quanto para os deficientes, homos e por ai vai
Verdade. E isso cansa, viu? Ninguém deveria ser julgado por estereótipos. Mas, mesmo quem não gosta quando é consigo, faz isso com os demais sem a menor cerimônia… 😥