Aprendendo a ler o mundo.

Vez ou outra, alguém diz nos comentários, ou no MSN, ou por email, ou falando pessoalmente, ou por mensagens telepáticas e sinais de fumaça (esses últimos, um pouco de imaginação, na verdade hahaha) que curte a maneira como eu escrevo. Há quem me pergunte se o “Lobato” do sobrenome confirma o parentesco com o autor do Sítio do Pica Pau Amarelo e, quando digo que é um parente distante, respondem: “Ah, tá explicado seu talento: genética“.

Realmente, longe de mim desmerecer o sangue dos Lobatos (que é da minha mãe, meu último sobrenome é Austregésilo, mas sempre achei que, apesar de lindo e sonoro, dizer Lakshmi Austregésilo é quase pedir pras pessoas chorarem) mas na  verdade, o que me ensinou a escrever, de fato, foi ter ficado surda.

Soa estranho, né? Mas é verdade, vou contar porquê…
Antes de ficar surda, eu era uma criança impossível! Impossível eu ficar quieta num canto, sem a televisão ligada n’algum programa tosquíssimo, mais de 10 minutos. Assistir aula, pra mim, era uma tortura, porque me obrigava a sossegar por algumas horas. As únicas aulas que eu gostava eram ciências (isso durou a vida acadêmica toda, sempre amei biologia) e matemática (o que eu acho esquisitíssimo, porque hoje em dia, sou negação pra qualquer cálculo que não seja as 4 funções básicas, que eu faço de cabeça). Eu detestava ler e qualquer texto maior que meia linha já me irritava. Era praticamente impossível me convencerem a ler o que quer que fosse. Só chegava perto de um livro, se alguém o lesse para mim, em voz alta.

Fora isso, meu tempo se resumia em brincar, correr, pular – com direito a saltar de um muro pra um tanque de areia dando um salto mortal, bater as costas a ponto de ficar sem ar, não contar pra minha mãe e ter dor até hoje  – ouvir música e, obviamente, ver televisão.

No dia que acordei surda, não perdi só a audição. Perdi parte da minha referência do mundo, porque não era mais possível ouvir música nem assistir televisão (que na época, não tinha closed caption, óbvio) e, parte da minha ousadia, ou melhor insanidade, foi-se junto, quando me deparei com a fragilidade e mortalidade do meu corpo.

Durante algumas semanas, senti um enorme vazio, porque eu não voltei pra escola, por conta dos tratamentos, e as minhas melhores amigas (do prédio que morava), tinham acabado de se mudar para o interior do Estado. E, naquele instante, eu descobri o que era tristeza, coisa que eu admito que não conhecia, porque a minha alegria de viver transbordava.

Um dia, durante essas semanas, alguém deixou largado um punhado de gibizinhos (revistinhas em quadrinhos) da Turma da Mônica, em cima do sofá. Dado o meu estado de desânimo, eu peguei um deles pra ler. Demorei muito tempo pra lê-lo todo, porque eu lia muito devagar, foi quase uma hora, sentada num canto da sala lendo as aventuras da turminha desenhada por Maurício de Souza. E, naquele instante, uma fagulha do fogo da minha alegria perdida se reacendeu e causou um verdadeiro incêndio na minha alma.

Daí em diante, eu descobri um novo prazer e sentido pra minha vida: Ler.

No começo, revistinhas em quadrinhos e livros infantis. Com o passar dos anos, revistas de curiosidades, de moda, de adolescentes, livros de todos os tipos e autores (confesso que AMO livros de suspense policial até hoje).

Meu pai me deu de presente, um videocassete, que se tornou meu xodó. Sempre alugava um monte de fitas de VHS, com filmes legendados. Na maioria, filmes mais adultos, porque os infantis na maioria eram cópias dubladas.

E nesse renascimento da minha pessoa, obviamente, veio a facilidade para escrever. Minhas aulas favoritas passaram a ser a que exigiam mais leitura: história, geografia, literatura, gramática. E as minhas notas, nos anos seguintes, passaram a ser melhores do que antes, dado o meu interesse por estudar, aprender…

Não posso dizer que sou grata de ter perdido a audição. Ninguém deveria ser grato por ter se tornado deficiente, mas sou muitíssimo grata pelo mundo que se abriu diante dos meus olhos. Acordar surdo não é, obviamente, o sonho de ninguém; mas seria mentira dizer que só me acarretou problemas. 90% da pessoa que sou hoje, que as pessoas costumam dizer que admiram hoje, foi resultado desse processo. Porque eu tive que amadurecer antes da hora, porque eu tive que redescobrir o mundo, porque eu acabei me tornando uma pessoa mais culta, mais paciente, mais consciente, mais tolerante comigo mesma e com os demais.

Eu cheguei a ter uma coleção de mais de 3 mil exemplares de HQs, que foram doadas pra uma gibiteca municipal.  Lembro a cara de surpresa das atendentes, quando cheguei lá com 4 caixas grandes e disse que queria doá-las. É uma dessas lembranças que não tem preço, sabe?

O objetivo do texto de hoje não é mostrar: “Olha como eu sou legal e pollyana!” mas dizer que mesmo as coisas ruins podem ser boas, quando você se permite tentar, quando você se permite mudar e fazer juz ao ditado: Quando a vida lhe der limões, esprema-os nos olhos dos seus inimigos… Ops, não era assim, mas serve hahaha

Beijinhos,

Lak

27 Resultados

  1. renata disse:

    Lak, quando a vida nos “tira” alguma coisa, ela nos dá outras em troca para compensar. Ainda bem que nosso corpo e mente se adaptam as novas situaçoes.
    beijos

  2. Maysa disse:

    Tem uma citação que diz mais ou menos que “Quando se fecha uma porta, abrem-se algumas janelas”… E esse seu texto é a prova viva disso.! Beijinhos tira muita fota amanha, pra eu ver, pq não vou poder ir… 😡 😥

    • Avatar photo laklobato disse:

      Sim, eu gosto imensamente desse ditado “quando Deus fecha uma porta, abre uma janela”. Acredito de verdade nisso, porque vi que é o que realmente acontece, a menos que você não se permita ver…
      Podexá, centenas de milhares de fotinhas serão tiradas hihihi
      Beijos

  3. Lakinha adorei o seu relato, mas eu sempre fui ao contrario de você hahaha apesar de BEM energica eu tenho paixão pela leitura desde pequenininha. Eu já conseguia ler e escrever ( esse escrever era com dificuldade qualquer hora conto porque) qualquer coisa. Na pré escola eu lia tão rapido, que as vezes a professora colocava a palavra no quadro e eu já sabia o que era antes de ela terminar. Quando tinha apresentação de alguma coisa na escola e precisavam de alguém pra ler algo em voz alta, era sempre eu. SEMPRE ODIEI matematica e sempre amei ciencias tb hehehe. Eu deduzo que eu já tenha lido por volta de 1000 livros ( de “bobeira” não é pra estudo não) hahahah qualquer hora eu faço as contas. E filmes, bom eu sempre ODIEI dublado, sempre tive DESGOSTO de filme dublado. Acho que Deus já tava me preparando desde pequena pro que iria acontecer na adolescencia hahahahahahhaa.
    BEIJOS

    • Avatar photo laklobato disse:

      Pois é, eu mudei absurdamente por causa da surdez. Nem quero imaginar o tipo de pessoa que eu seria, se isso não tivesse acontecido. O prognostico de pessoas que não curtem ler… não são exatamente as minhas pessoas prediletas pra um bate papo hehehe
      Vc deu sorte de já nascer perfeita… hahaha
      Beijos

  4. Adriana disse:

    Texto irretocável, primoroso! No final, como sempre, você arrebenta e não perde o bom-humor e isso faz a gente levantar da cova! Não se preocupe: não acho que as pessoas venham aqui para ver exemplos de polianice, Lak! Quem vem aqui, quer partilhar a vida. Pra isso, perfeição não ajuda. Acredito que é na humanidade dos nossos desacertos que está a verdadeira possibilidade do encontro. Eu aposto nisso! Bjs.

    • Avatar photo laklobato disse:

      Mas é um péssimo habito que eu tenho: sempre querer achar o lado bom de tudo. Falo péssimo, porque às vezes, dá muito mais trabalho que reclamar e cansa hahaha Beijos

  5. Edelson Lopes disse:

    Não preciso nem dizer que foi um belo post (seria redundãncia).
    Olha antes eu gostava de ler muito. Qualquer coisa que via na frente eu lia. Seja gibi (ah se eu encontro um hoje não faço nada até terminar), livros, embalagens, etc… O que não tinha paciência para ler, e ainda não tenho, é livro de história.

    Hoje meu ritmo de leitura está baixo (isso no quesito leitura de textos em papéis, pq na internet, principalmente o seu blog, não tem como não ler), os livros de literatura foram substituídos por de tecnologia, por causa da faculdade, estes só leio se tiver procurando resolver algum problema.

    Mas enfim, parabéns pelo dom que tens pela escrita, com certeza boa parte dele você tem por causa da leitura.

    Bjus

    • Avatar photo laklobato disse:

      Ah, verdade seja dita. Minha paciência pra ler textos impressos diminuiu consideravelmente, depois de começar a ler textos de internet. Mas acho que isso se deve, especialmente, porque aqui na net tudo é muito mais… como dizer sem parecer indelicada?… mastigado do que nos livros.
      Mas acho que é um novo momento da humanidade e, como estivemos presente no auge dessa evolução (que ainda não acabou) ou nos integrávamos, ou ficaríamos à deriva. Literalmente!
      Por isso mesmo falei que é importante, pra mim, a leitura diária de outros blogs. Para escrever bem, é preciso ler. É um processo intimamente interligado.
      Bjs

  6. Raul disse:

    Muito lindo o texto. As vezes tento me imaginar como eu seria sendo ouvinte e creio que seria uma pessoa totalmente diferente do que sou. E também imagino pela minha personalidade que seria uma pessoa nada agradável – risos!

    Beijos 😉

  7. Avatar photo laklobato disse:

    Será? That’s the question… Mas de qualquer forma, imaginar é um exercício de criatividade…

  8. CAROL disse:

    lak! interessante o seu relato! não nasci surda, mas perdi a audição com dois meses de idade, por causa da catapora. então, não passei por isso, de ouvir e depois não ouvir, como vc e a diefani. mas como temos gostos semelhantes! desde pequena, por causa da minha oralização e p aprender a fazer leitura labial, aprendi a ler pequenininha! heiuehe começei a ir pra escola com dois aninhos, e digamos que eu era bem timidinha com pessoas que não conhecia, mas depois eu virei o terror da escola de tanta energia haha, coitada das professoras. Eu lia muito as conversas alheias – quem nunca fez isso, atire a primeira pedra, ehieheu, era assim q ficava sabendo das fofoquinhas e outras coisas mais. Era o meu passatempo preferido, ficar queita, sorrindo feito sorriso de bonequinha, observando as pessoas gesticulando, conversando, lendo as bocas delas.. me dá uma sensação q não sei explicar! Ah, minha habilidade na matemática se resume ás 4 funções básicas ehiuhe. E na redação e ciências humanas, sempre me saía bem, se eu estudasse. Não estudava, para falar a verdade, era uma enrolada para terminar as tarefas do dia a dia, e quando eu era maiorzinha na faixa dos cinco anos, por aí, meu quarto era uma bagunça, gibi, livrinhos de histórinhas e bonecas, tarefas e roupas espalhadas e a tevê sempre ligada em alguma coisa legendada heiuheiu, isso acontece até hoje, haihaiua, tenho 18!*_* 😳 😛 😀 🙂 🙂

    • Avatar photo laklobato disse:

      Que bacana!! Adorei seu relato!! Verdade que tb já fiz muito isso de ficar no meu canto, lendo a conversa alheia hahaha quem pode pode. Beijos

  9. April disse:

    Oi Lak, eu já adorava ler antes mesmo de aprender, ficava morrendo de inveja de quem sabia ler, sempre achei que seria a minha independência, poder me informar sobre qq coisa, ler todos os gibis que pudesse sem precisar incomodar os outros, pois sempre tinha a sensação de que me estavam fazendo um favor de ler em voz alta, não gostava…
    Ainda adoro um livro e uma revista e claro adorei a invenção da internet, com um livro não existe fila demorada, nem médico que te esquece na recepção, pra falar a verdade eu é que me esqueço do mundo já perdi estação de metro, qdo percebo já passou hahaha
    bjs 😀

    • Avatar photo laklobato disse:

      Hahaha verdade, sempre tenho um livro na bolsa, pra aguentar todos os momentos de tédio, como sala de espera e fila. Torna tudo suportável. Mas só hoje em dia, quando criança, eu ocupava meu tempo ouvindo a vida, mesmo. Até fofoca dos vizinhos, eu curtia ouvir hihihi peste!

  10. Juca Jardim disse:

    então essa compulsão pra escrever tem explicação!rsrs… ao mesmo tempo que é mais chocante se essas limitações acontencem com uma criança, tb é mais certo que ela ainda tem muita coisa no mundo pra se encantar e daí superar tudo… é tocante mesmo! (o olhar do adulto, ao se projetar nela sem considerar isso, confessa: “acho que eu não conseguiria!”… a capacidade de encantamento já ficou reduzida demais…. :/ )

    • Avatar photo laklobato disse:

      Ou não, como disse Caetano hahahaha
      Acredito na capacidade de superação de qq um. Mas, concordo que com criança é muito mais fácil! Especialmente porque ela perde menos tempo sentindo pena de si mesma.

  11. elaine disse:

    Pois é, como dizem os hinduistas Karma é uma questão de Darshana, ou seja Karma
    é uma questão de ponto de vista.
    Tb existe um provérbio arabe que diz, não tem como andar no caminho, a não ser que vc se torne o próprio caminho!
    E, só pra finalizar se a cabeça é boa o problema vira oportunidade se não é, a oportunidade
    virá problema.
    E, vc sem duvida transformou seu caminho dai em diante numa grande oportunidade…tornou-se parte do seu caminho.
    Que esse caminho se torne cada vez mais brilhante! 🙂

  12. Leila disse:

    Amei demais seu texto.
    Eu já sabia ler e escrever antes de ficar surda, até tocava piano. Mas quando perdi a audição, meu mundo caiu: pensava que o rádio quebrou, a TV quebrou. Eu já saí do hospital lendo os lábios, sem saber que estava surda. Lendo os lábios, na minha cabeça, estava ouvindo. Só caiu a ficha qdo fui ligar o rádio e a TV. Queria ouvir Roberto Carlos. E nada. Tentei ouvir Tarcísio Meira e Glória Menezes e nada. Quando fui pegar os gibis da Mônica, demorei a ler, não conseguia ler direito, pq eu lia ouvindo música.
    Mas como vcs disseram aí em cima: ‘qdo algo se fecha, outra coisa abre’. É isso aí.

  13. Leila disse:

    Ah, esqueci de dizer como eu saí do hospital já lendo os lábios: eu e meu irmão, todos os dias, falávamos sem voz e quem adivinhasse as frases completas, ganhava uma garrafa de coca-cola. Era assim todos os dias…Aí qdo fiquei surda, já tava lendo os lábios. Incrível, né?

  14. Leila disse:

    hehehe… Nunca me esqueço dessa cena: uma médica chegou perto da cama em que estava no hospital e disse: ” Você quer ir pra casa?” e eu respondi, choramingando: “Quero ir pra casa!”, aí ela olhou pra cara do meu pai que olhou pra cara da minha mãe, que olhou pra cara de outro médico. Me lembro bem que o outro médico apagou a luz e eu não respondi nada, depois acenderam e minha mãe saiu correndo chorando. Eu fiquei achando que tava todo mundo doido… hihihi…

    Ah, voltando ao assunto do sangue dos Lobatos, que tal explicar em outro post o sangue dos Austragésilos? 😛

  15. Luiza disse:

    Que lindo!!
    Menina como gosto de te ler, é muito inspirador. Tenho um filho de oito anos que é surdo, mas tb vejo na leitura a esperança que lhe encherá muitas lacunas…Minha maior alegria e vê-lo lendo. E como ele gosta dos seus gibis, isso já lhe garante hoje, ser o maior leitor da turminha dele.
    As pessoas são diferenrtes e suas experiências tb, mas como é bom ter um espelho lindo como você para olhar…

    • Avatar photo laklobato disse:

      Luiza, fiquei emocionada com o seu comentário! Especialmente por ele gostar de gibizinhos, como eu. Faz bem lê-los, aprendi muitas coisas boas com essas historinhas…
      E sim, concordo com você, com espelho tudo parece mais fácil. Busquei muitos na minha vida, pra suavizar o caminho. E fico orgulhosa de saber que agora chegou a minha vez de ser espelho à outas pessoas.
      Espero que seu filho chegue ainda mais longe do que eu. Incentivo, tenho certeza que não falta!
      Beijos

  16. Rodrigo Martins disse:

    Acabei de virar leitor do seu blog. rs…

Participe da conversa! Comente abaixo:

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.