Divagando sobre surdez adquirida e música

Nos últimos meses, minha vida tem sido uma constante série de (re)descobertas através a percepção sonora. Ouvir é o sentido do qual fui privada por mais de duas décadas e, portanto, praticamente tudo para mim, é novidade. Como se eu fosse uma criança em corpo de adulto já crescido, tendo que reaprender a fazer o óbvio.

Longe disso ser uma reclamação. Na verdade, é um daqueles deslumbres paralizantes…

Mais do que ouvir, esse aprendizado consiste em escutar, compreender, entender, assimilar, criar repertório. A audição, ao contrário da visão e do tato, que são imediatos (ou quase) requer interpretação ao ser acionado áreas muito específicas do cérebro.

É claro que, para quem ouve naturalmente desde nasceu, isso parece ilógico, porque na cabeça da maioria, para alguém que tem perda auditiva, bastaria aumentar o som que a pessoa ouvisse com clareza e exatamente igual ao que ouve.

Não é assim porque geralmente as perdas são desiguais conforme a frequência e, de muitas formas, o som é ouvindo de forma distorcida.

No caso de implantados, a gente também não ouve naturalmente. Ouve através de um processador artificial, portanto, tem que criar sinapses específicas para decodificar o som transmitido por ele. Soa diferente sim, porque é um som feito por uma máquina, mas na cabeça de quem ouve assim, ESSA é a forma-referência que se torna, pra nós, a natural. Questão de ponto de percepção.

Mas, o meu deslumbramento atual é com a música. A princípio, ouvir música é uma coisa tão óbvia para mim quando para um ouvinte. Nasci ouvindo e compreendo bem porquê se ouve música. Ainda que eu não tenha o mesmo hábito que a maioria. Percebo que a música causa uma espécie de “identidade emocional”. As pessoas ouvem música de acordo com o estado de espirito que sentem ou conforme querem sentir: Música para acordar, para dormir, para trabalhar, para dirigir, para dançar…

E isso, pra mim, soa absolutamente estranho, já que geralmente essa identidade se forma na pré-adolescência, justamente quando tive meu desenvolvimento sonoro interrompido. Ouvir música, pra mim, soava mais ou menos como um mero passatempo.

Ontem, resolvi ouvir “Wish You Were Here” (Pink Floyd) simplesmente porque alguém, há muito tempo, me deu a letra dessa música e eu a decorei. No entanto, por ser uma música muito lenta, nos primeiros meses de implantada eu ainda tinha dificuldade de perceber todos os tipos de música. Adorei ouvir essa música pela primeira vez e tal, achei-a linda (e confesso que mais lenta do que eu imaginava).

Mas, o que me causa esse instante de reflexão, é que até seis meses atrás, audição para mim, limitáva-se a presença e ausência de sons. Portanto, ouvir música é um passo astronômico no quesito ouvir.

A minha surpresa veio nessa exploração musico-sonora de ontem. Ouvir aquela música me fez querer ouvir outras. Definitivamente, eu adoro Jazz e, por enquanto, é a minha absoluta preferência. (esse comentário é mais pra mim do que pra vocês, com o propósito de saber se em 1 ano de repertório essa preferência irá se manter).

Enfim, mas o que me causou espanto, foi o seguinte…

Na brincadeira, resolvi procurar “Marcha Fúnebre” do Chopin, simplesmente porque tal como “DoRéMiFá” é uma das pouquissimas músicas que eu me lembro exatamente da música e seria capaz de reproduzir, se soubesse tocar algum coisa. Nisso, eu confirmei que a música tem realmente um trecho exato como eu me lembrava. Porém, a minha surpresa foi que  ela, apesar de não ser uma música com a qual eu tenho um histórico sentimental (conheço porque toca(va) em desenhos animados) ela parecia ter acionado uma área adormecida do meu cérebro que me fazia sentir “saudade”, “falta”. Pensei “como isso é possível?”

Eu sei que, pra quem ouve, parece óbvio. Mas pra mim, é como se eu fosse um alienígena de um planeta sem música que acabou de chegar na Terra e não entende como aquilo que eu não posso ver nem tocar, me causa uma emoção tão específica. Pensei “provavelmente, é porque lembro dessa música da minha infância”. Tentei outra música clássica – porque a música classica é, pra mim, a forma mais pura de música – Requiém, de Mozart. E me deu uma vontade imensa de chorar, embora eu estivesse estupefante de emoção (até comentaram aqui, hoje, que a expressão do meu rosto está parecendo de criança, com olhinhos brilhantes e rosto ‘aberto’). E fiquei deslumbrada de perceber que a música tem a capacidade de acionar áreas emocionais específicas do cérebro…

Uma área, inclusive, que ficou adormecida em mim ao longo de duas décadas. Que me fez compreender uma coisa que sempre me intrigou: Quando eu era ouvinte, era excelente em matemática (minha matéria favorita no primário). Quando perdi a audição, comecei a ter dificuldades nessa matéria, que passou a ser o meu pesadelo (foi um declínio gradual, quanto mais tempo de surdez eu tinha, mais dificuldade tinha com a matemática). Passando a ser boa em matérias de humanas – português, história e geografia – as quais detestava quando criança. Nunca tinha entendido o porquê disso, até hoje de manhã: reprogramação neurológica. Por uma questão de adormecimento das  áreas do cérebro que regem música/matemática e fortalecimento das áreas que regem a comunicação (uma questão de puro instindo de sobrevivência!!).

Não sei se isso é uma regra, nem digo que surdos tenham, necessariamente, dificuldade em matemática. Falo específicamente do meu caso, que fique claro.

Mas, percebo que, se eu não tivesse ficado surda, seria alguém absolutamente diferente de quem eu sou hoje. Não pela experiência de vida somente, mas pelo próprio funcionamento do meu cérebro. De repente, a vida se tornou um laboratório e eu, de uma só vez, tornei-me minha pesquisadora e a própria cobaia. Fascinante!

Beijinhos sonoros,

Lak

30 Resultados

  1. Julia disse:

    Fascinante mesmo! Se eu estivesse metida na area academica, ja tinha te convidado pra ser meu sujeito de pesquisa, porque estamos falando de coisas interessantes sobre percepções, sentidos e de como isso influencia no comportamento, no dia a dia e na formação de uma identidade.
    Ah, outra coisinha, ontem tatuei a flor de lotus!!! Finalmente! E recomendo o tatuador.
    beijinhos

  2. Elias disse:

    De fato, fascinante como vc coloca as coisas.
    Ontem no twitter li sua conversa com o Leo, montando a sua playlist. Queria sugerir pra sua playlist rs, “chovendo na roseira” versão ao piano do Tom Jobim. É de uma leveza deliciosa. Aproveite.
    Abs

  3. SôRamires disse:

    Minha “filhinha” querida. Simplesmente arrepiante o que você escreve.
    Me emocionei muito porq

  4. SôRamires disse:

    tá vendo me emocionei que sai da mensagem…
    me tocou quando você fala de Pink Floyd, Jazz, Música clássica…foram e são minhas referências e minhas âncoras para não afundar na surdez.
    E digo “filhinha” com todo carinho do mundo porque me encantaria ter uma filha como você mas por sorte tenho a amiga. Fiquei tocada no fundo do coração. O universo musical é muito importante na minha vida e me faz um bem danado. Beijos embaçados.

  5. David disse:

    Não vou nem falar nada… simplesmente lindo.
    A questão da música é que ela ultrapassa os limites auditivos e cerebrais e atinge o âmago da alma.
    É simplesmente demais… tenho saudades desse tempo de poder ouví-las.

    Beijos musicais!!!!

  6. Jairo Marques disse:

    Gata, fiquei nunca curiosidade científica tremenda depois deste post. Vc bem poderia trazer aqui pro DNO uma abordagem neurológica do não-ouvir e a atividade cerebral, né?! Esse barato de áreas do cérebro que comando isso e aquilo…. enfim, sei que é bem dificil de fazer, mas seria interessantíssimo ler!! Beijosss

    • Avatar photo laklobato disse:

      Vou procurar informações médicas com algum neurologista (provavelmente as fonos devem ter algum contato que possa nos esclarecer) e trarei a informação ao blog, prometo hehe
      Beijinhos

  7. Rogério disse:

    Um antigo professor dizia que a música é um abstrato que se toca. Nada mais verdadeiro. Minha vivência na área me ensinou que não se tratam somente de sons e pausas, sustenidos, bemóis e claves. A música não só tem alma, como consegue nos tocar a alma. Principalmente a música erudita, que dá seu recado sem a necessidade de palavras articuladas. Seu texto, lindo, me reacendeu a vontade de escrever sobre o assunto lá no cafofo, porque na primeira vez que ouvi Chopin senti raiva, e era a Polonaise. Depois fui saber a história dessa peça e batia muito com o momento que eu estava vivendo. Daí achei que valeria discorrer sobre isso, sem o compromisso de chegar a uma conclusão.
    Beijos estalados.

  8. Bruna disse:

    Fascinante esse nosso cérebro né?
    Existem músicas bobinhas de infância, que a cada vez que ouço, me emociono. Imagino a emoção que você sente hoje ao poder ouvir e “sentir” a música em todas as suas formas.
    Bjs

  9. Alessandra Vidaurre disse:

    OI Lak,
    Recebi ontem o convite para o VII CURSO PARA PAIS DE CRIANÇAS DEFICIENTES AUDITIVAS em SP. Estou me organizando pra ir. Teve um aqui no Rio, mas foi justamente nas minhas férias.
    Segue o convite:

    NÚCLEO DO OUVIDO BIÔNICO DO HOSPITAL SAMARITANO
    COORDENAÇÃO: PROFa. DRA. MARIA CECILIA BEVILACQUA

    TÓPICOS A SEREM ABORDADOS:

    · Deficiência Auditiva: Etiologia e Tratamento.

    · Avanços tecnológicos nos dispositivos eletrônicos para tratamento da deficiência auditiva.

    · Entendendo o Sistema de Frequência Modulada.

    · Implante Coclear Bilateral.

    · Habilidades auditivas e de linguagem e estratégias facilitadoras no dia-a-dia da criança e dos familiares.

    · Criança deficiente auditiva e os primeiros anos na escola: considerações importantes para pais e professores.

    Palestrante internacional – Anne Beiter, PhD – Audiologista Diretora Clínica da Cochlear Ltda, autora de vários capítulos de livros e publicações em revistas especializadas sobre Implante Coclear em crianças e adultos.

    Data: 29 de maio de 2010.

    Local: Espaço Russel – Rua Conselheiro Brotero, 1505, 9º. andar. Bairro: Higienópolis – São Paulo/SP.

    Inscrições e maiores informações com Susy e Anderson pelo telefone: (011) 3821 5871.

    Bjs,
    Ale

  10. Cássia Barreto disse:

    Lak, você assim vai acabar me convencendo. Parabéns, muitos sons para você. Bjos 🙂

  11. zuleid disse:

    Oi!
    Concordo com o que disse o Rogério, parece que a música nos procura porque estamos na mesma frequencia sensitiva.Quantas vezes sentimos os olhos marejarem ao ouvir uma música.
    Lennon em uma de suas viagens alucinógenas dizia ver as notas musicais dançando no ar (tudo bem que na situação em que ele se ncontrava dava prá ver TUDO!!), mas ainda assim acredito que a sintonia dele com o universo musical fosse muito boa.
    E a sua sensibilidade para os demais sentidos Lak, foi treinada e hipertrofiada de tal forma que ao ouvir um som a memória afetiva resgata as demais emoções associadas a ele. É o que eu penso…mas ler você é muito mais interessante do que qualquer explicação teórica! É puro sentimento.
    Beijos.

  12. Judy disse:

    Lak, experimente ouvir algumas coisas “a capella”, só vozes, pra ver se é legal também… No youtube tem muita coisa assim…

    Beijos e adorei o post! 😉

  13. Nanny disse:

    Lak,
    Emocionante seu texto.
    Lágrimas vieram aos meus olhos sem que eu percebesse e deixei q essa emoção tomasse conta de mim. Vivi intensamente esse seu momento.
    Parabéns pela coragem de se expor;
    Parabéns pela vontade de vencer;
    Parabéns por vc ser quem vc é: sem máscaras!
    Aceite meus dengos e mimos baianos e minha admiração pela pessoa q vc é.
    Beijokas!

  14. Andressa Engel disse:

    Ouvir música!!! Que saudades….em casa ouviamos muita música até eu ficar surda, pensei que mesmo com o implante não daria mais…que bom que vc fez este post, reacendeu minha esperança de um dia curtir um som bacana…
    Ha alguns dias pedi p meu marido para que continuassem a ouvir música,pois ele e meu filho automaticamente tbém pararam, e sabe que foi legal pois agora no carro qdo estamos viajando ele coloca as músicas e vou seguindo as letras atraves dos lábios dele, meio que descompassado,mas eh muito divertido, o meu filho dá boas risadas do jeito louco da mãe dele…hehhe. Afinal tudo se adapta…
    Bjus e fica com deus

  15. Marília Sunshine disse:

    Nossa Lak… não é só fascinante não… é MARAAAA!!! Foi uma aula que vc nos deu agora!! 😀 Deve ser por isso que eu ia mal na matemática… eu não treinava meus ouvidos para a música, e tbm nem treinava a lógica!! ahahahahah. Desde pequena gosto mais das humanas.

    Ah! Só uma dica: qdo vc for redescobrindo os sucessos musicais que rolaram neste tempo “sem som”, pede ajuda a alguém que tenha ótimo gosto pra isso, pq rolou cada bobeira… ai ai ai!! Socorrro!! 😯

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