Lakita na Balada
Tenho comigo, a proposta se servir de cicerone aqueles que gostariam de viajar pelos mares silenciosos por onde navega uma deficiente auditiva. Embora eu não goste de ser resumida à simplesmente uma pessoa que não ouve, admito que é também um enorme prazer de servir-lhes de guia por esses caminhos escassos de sons…
Peço licença pela linguagem poética, porque a experiência em questão foi há quase uma década e, no entanto, acho que fica mais fácil fazer a narrativa em tempo presente, quando a proposta de transportá-los à minha realidade não-auditiva prevalesce.
“É uma sexta-feita à noite. Sinto-me inquieta em casa. A vida parece fervilhar lá fora, enquanto eu me sinto impaciente aqui dentro. Não apenas dentro de casa, mas dentro de um corpo que, muitas vezes, parece menor que a grandeza do meu espírito.
Percebendo essa inquietude, minha irmã se oferece para me levar à balada. Aceito o convite de bom grado, tudo o que quero nesse instante é saborear os sedutores prazeres da noite que corre levemente fria, na capital paulistana.
Vamos numa balada na Vila Madalena que, para quem não conhece a cidade de São Paulo, é um rico reduto da vida boêmia alternativa. A porta da balada é de metal, com uma fachada pintada em rosa e nela, nos recebe um porteiro grandalhão com cara de poucos amigos; mas que sorri simpático quando em abre o portão do que seria meu laboratório de antropologia desta noite.
O nome da balada – uma ironia que somente o Jairo e seus fieis leitores irão compreender: “Matrix”
Assim que adentramos pelas pesadas portas de metal, a primeira sensação que me invade é olfativa. Sinto o aroma forte de tabaco queimado, misturado com o cheiro embriagante de álcool e simples odor de corpos humanos em movimento constante. Junto com esses cheiros, sinto meu peito vibrar pelo som altissimo que vem da pista de dança, mas que para os meus ouvidos não soa mais que um sussurro – eu estava sem AASI (aparelhos auditivo) nesta noite.
O primeiro pavimento trata-se de um bar típico. Um balcão num canto, que tem uma porta ao fundo, de algo facilmente deduzível que trata-se de uma cozinha. O barman mexe-se com destreza entre os copos e garrafas e faz malabarismo (nesse caso, não-literal) para atender os garçons e clientes que pedem bebida diretamente no balcão. Na ponta oposta, um grupo reduzido de mesas, devidamente acompanhadas de cadeiras cheias que, nalguns casos, suportavam mais de uma pessoa por vez. A única janela de vidro é fechada, transformando aqueles mesas, cadeiras e pessoas numa imensa vitrine de tipos humanos.
Percorremos um corredor em desnível descendente, que nos leva à pista de dança. Cada passo que dou, me traz à pele e aos ouvidos um som que cresce progressiva e rapidamente, até que, atingindo o nosso objetivo, me deparo com um dos lugares que mais me instiga, na minha condição de pessoa desprovida de audição. Encabeçada por um pequeno tablado, onde um DJ trabalha de óculos escuros (coisa que não entendo) comandando o som, a pista é pequena e quadricular, regada por uma luz estroboscopia que, somada ao ensurdecedor som ambiente, torna a música quase palpável. Vejo as pessoas se mexerem frenéticamente acompanhando o ritmo audio-visual que parece preencher seus corpos com uma emoção transbordante.
Música é, pra mim, certamente uma das mais emocionantes e distantes aventuras humana. Eu, do meu ponto de vista forçadamente silenciado pela doença que me roubou parte considerável da audição, passo a imaginar música de forma visual. Ela é, pra mim, uma força mágica que transforma cada molécula do ambiente em energia capaz de compenetrar os seres humanos com tal magnitude, que parece atingir simultaneamente coração e cérebro.
Percebo que o corredor leva ainda a um pavimento inferior, mas nenhuma de nós se interessa de vasculhar aquele cômodo agora.
Dado o fato que a luz piscante me dificulta a leitura labial – tornando-a completamente inacessível – pergunto para Parvati se ela se importa de ficarmos mais perto do bar, onde a luz é fixa e adequada à minha condição.
No corredor, ela dança animadamente, embriagada pela própria felicidade. Essa reação parece típica da música, percebo isso com uma frequencia absurda. A música realmente causa reações físicas e orgânicas nas pessoas, sem que elas mesmas percebam, moldando um estado de espírito muito além do usual.
Como eu não tenho vontade pra dançar, nesse dia, encosto na parede, observando aqueles tipos que habitam tal ambiente. Não é a primeira nem a última vez que vou à balada, mas não consigo deixar de ficar fascinada com os outros habitantes do local. Vejo pessoas descerem para a pista portando uma garrafa de bebida, ao mesmo tempo que outras sobem pro bar, suando às bicas. Vejo casais esmagarem-se um ao outro contra a parede, dando a impressão de uma pintura abstrata e viva. Observo grupos de amigos que conversam e riem; e me pergunto como eles conseguem diferenciar o som berrante da música das vozes que ali falam. Eu não nasci surda e sei que isso é possível, mas já faz tanto tempo que fui tomada pela condição de deficiente auditiva, que os sons me parecem ser naturalmente todos mesclados, perdendo suas particularidades individuais, inevitavelmente.
Vez por outra, algum rapaz vem falar comigo e faz um ruído que me soa como abelhas, próximo ao ouvido: “Bzi Bzi Bzi”, é tudo que consigo compreender do que eles dizem. Por conta disso, passo a enxergá-los como zangões, que zanzam pela balada em busca de pólen: a conversa feminina. E a balada parece se transformar numa imensa colméia, onde a música ambiente faz as vezes do mel, a melodia.
Determinada hora, minha irmã desaparece diante meus olhos e eu me sinto compelida a ir encontrá-la. Não que eu sinta medo da solidão, mas ela é minha carona na volta pra casa.
Encontro ela próxima do balcão do bar, como uma flor bela e delicada, enquanto conversava com dois zangões. Vendo a minha aproximação, ela se adianta a dizer:
– Essa é minha irmãzinha.
Um dos rapazes com quem ela conversa me sorri e ela completa:
– Ela não ouve, se quiser conversar com ela, fale de frente pra ela.
Lendo os lábios dela dizerem isso, sinto um misto de gratidão e desgosto. Zangões, tendem a ser animais primitivos e podem não ser suficientemente inteligentes para distinguir uma flor inerte de outra simplesmente diferente.
Mas, surpreendendo todas as minhas – péssimas – expectativas, ele toma essa particularidade como um desafio e pergunta meu nome.
Eu falo, porém baixo demais e ele sorri de novo, pede para eu repetir. Disso, se inicia uma conversa muitíssimo agradável, até porque, pra falar comigo, pouco importa o som ambiente e ele não precisa forçar as cordas vocais. Minha irmã e o outro zangão decidem sentar-se numa mesa e, aquele que me dava atenção, diz que pretende dar uma volta pela colméia, digo, balada.
Pergunto se posso ir com ele, que consente. Não sei se ele percebe que aquela simples voltinha na balada, é uma aventura exploratória da minha parte. Passamos pela pista de dança, onde novamente observo as pessoas totalmente absolvidas pelo mel, mas continuamos nossa caminhada até o compartimento do local onde eu ainda não havia ido.
No terceiro e último pavimento, há apenas duas mesas de sinuca, um banco feito de concreto e coberto por almofadas de couro num canto e humanos que riem e se divertem, na companhia uns dos outros. A poesia viva daquela cena pode ser facilmente descrita como alegria, torpor, entusiasmo, pouco importando a influencia etílica presente ou não.
Acomodamo-nos num cantinho do banco e, sem dizer uma palavra, meu ‘acompanhante’ tem a expressão do rosto focada nalguma coisa que se move, invisível. Ele diz:
-Adoro a música que está tocando.
Eu respondo, muitíssimo sem jeito:
– Desculpe, mas nem imagino qual seja.
Ele fala um nome em inglês, seguido pelo que deduzo que fosse o artista que cantasse. Minha ignorância permanece a mesma. Ele olha pra mim, com a mesma cara de curiosidade que eu sinto. Da minha parte, de querer saber o que ele está ouvindo. E da dele – supondo – intrigado com o silêncio que me preenche naquele instante.
Somos de universos diferentes, somos de espécies diferentes. E ainda assim, conseguimos compartilhar, cada um sob o seu ponto de vista bastante singular, uma pequena fração de segundo, nesse tempo e espaço, tornando real as palavras de Caetano Veloso: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.””
Beijinhos,
Lak
kkkk..faltou o final da historia, rolou ou não rolou hein…kkkk
Adorei como sempre… 😉
Hahahahaha esse eu fico devendo, pq o maridão lê o brog!!
pode acreditar, Lak… tem horas que é melhor ser surdo pra não ter que escutar umas “músicas” por aí! 😀 … qdo não tem jeito, melhor mesmo é encher a cara logo e abstrair a situação toda, bem naquela de que “não tem música ruim, vc é que bebeu pouco!” 😛 (gostei do seu relato etnográfico da balada!… djs de óculos escuro é crássico, né… performance “cabeça” pra mostrar ele tá todo mergulhado na in-cri-véu complexidade semiótica do putz-putz-putz que ele improvisa… acreditam ser xamãs do asfalto… funcionaria em Londres… aqui soa como disse o Cazuza: “são caboclos querendo ser ingleses!”) 😡
Hahahahahahaha “erformance “cabeça” pra mostrar ele tá todo mergulhado na in-cri-véu complexidade semiótica do putz-putz-putz que ele improvisa” foi o máximo….
Mas eita, coisa, eu falo coisas super fashions sobre musica e vc comenta do oculos do DJ? Cadum cadum hahaah
rsrs… mas eu curti muito!!!… acho só que vc substimou o papel do álcool na composição da MELodia! 😀
Num quis fazer apologia às drogas hahahaha
Lak,
vc acredita que eu me sinto meio mal qd vou a lugares como este? Só se tiver outros amigos surdos comigo, aí tudo bem. Mas no escuro, onde não consiga me comunicar… vendo um monte de pessoas dançando e cantando.. e eu sequer consigo acompanhar. Prefiro ficar sentada batendo papo.
Legal vc saber fazer proveito disso. Geralmente eu fico mal humorada. hi hi hi
beijinhos!!
Maira, eu tiro proveito de tudo =P
Mas entendo tb o seu ponto de vista. Já larguei varios amigos na balada pra ir pra um cantinho mais iluminado… Sempre achava companhia pra conversar, tanto que as amigas da minha irmã diziam “putz, o que sua irmã tem que ela sempre se ajeita ali no cantinho”? hahaha
Beijos
Lógico que rolou! Essa é carioca da gema, gente! 😈
HAHAHAHAHA não me comprometa, Raul!! Sou uma mulher casada e direita!
Menina, vc escreve bem demais. Incrível as concordâncias e coerência do texto. Tem algum livro? Se não, já pensou nisso?
Na balada a gente já acha estranho a dança de alguns ’empolgadinhos’, imagino sem música. Deve ser difícil não confundir com um ataque epilético!
HAHAHAHA, Sam, eu ri alto aqui diante seu comentário. E sim, já pensei nisso tb, que tem gente que não sei se tá dançando ou tendo ataque. Mas, música a gente sempre ouve, de um jeito ou de outro. Balada, principalmente, a vibração faz as vezes da música então, a gente deduz que tem música. Mas não deixa de ser estranho, aquele exagero nalguns casos.
Não, não tenho nada publicado não. Super obrigada pelo elogio… Quem sabe um dia? Falta um pouco de coragem de procurar editora =P
gostei bastante da história, bem legal
amiga lak… estou adorando viajar pelo seu mundo!!!
parabéns por seus testemunhos tão divertidos!!!
um beijo com saudades de portugal
Obrigada, moça!! Beijo enorme
lak…a gente se conheceu no rio, a primeira vez, com a maria …lembra??
e nesse dia, logo depois do jantar a gente foi numa mini baladinha, dançar!
nunca mais esqueço de eu estar falando com vc,e como a musica estava muito alta, eu falava no seu ouvido, e vc falava para mim…
“patchi, eu sou surda não precisa falar no meu ouvido, eu leio seus labios”
nossa q estupidez…a gente se programa para algumas coisas, e depois sai isso!!
obrigada por me mostrar que existem outras formas de “ouvir”!!
muitos beijos…p vc, edu, parvati…e claro eliane!!!
HUahuahuahua sabe que não lembrava disso? Eh verdade, eu sempre aviso que não precisam berrar no meu ouvido – até porque nem adianta muito – e todo mundo tem a reação que você tem. Super normal, nem estresso hahaha e me diverte ver a carinha de vcs de “ops…”
Te adoro, sabia?
Beijos
Ai Lakinha eu nem curto balada kkkk aquele povo suado, melequento, fumando, bebendo aquele monte de barulho misturado ( que ouço pouco mas quando misturados sao um inferno) e as luzes que me atrapalham. Prefiro ir num barzinho ou restaurante mesmo hahahah assim converso numa boa, COMO, bebo, COMO, me divirto, COMO kkkkkkkkkkkk.
Deu pra perceber que eu gosto mesmo de sair pra comer né? hahaaha
Imagine. hehehehehe Deu fome até…
Oi, Lak! Quem me “trouxe” aqui foi o Jairo. Seus comentários eu leio e aprecio há tempos no “Assim como você”. Visitar seu blog faço, hoje, pela primeira vez. Que alegria! Seu texto é primoroso: sensível sem ser piegas. A descrição que você faz da sua relação com a música é linda e prova que é possível sentir – e viver – de maneiras mil. Também gostei muito do post em que você comenta o texto do Rogério, ainda discutindo música. Meu filho, de 16 anos, é “roqueiro” e violonista erudito (sim, acredite!!!) e vive a música intensamente. Faço questão de mostrar seu texto pra ele. Não sou deficiente. Meu marido descobriu, há mais ou menos 5 anos, uma deficiência auditiva moderada que complica bastante a vida dele e de quem o rodeia. Ele é professor e tem passado por maus bocados por não aceitar sua nova condição. Também vou indicar o blog pra ele que tem muito a aprender com você. Minha enteada tem PC e vai vai adorar te conhecer. Enfim, acho que você ganhou novos e ávidos leitores. Sua escrita conquista. Parabéns! Ah! Desculpe a carta. Plagiando um outro blog já famoso, acho que tenho “compulsão por palavras”. Bjs.
Adriana, sinta-se a vontade pra comentar o quanto quiser, aqui não tem essas frescuras não. Cada um tem espaço de sobra pra falar o que pensa – até porque o negócio é debater hehehe
No que eu puder ajudar seu marido a aceitar a condição dele, conte comigo. Não posso garantir que todo mundo consiga ligar bem com a deficiência, porque não é fácil, não é tranquilo, não é gostoso. Mas a gente aprende a viver com isso, achar o lado bom, se apegar a isso, fazer a diferença por onde passa…
Você e toda a sua família, incluindo o filho músico e a enteada, são muitissimo bem vindos pra compartilhar os sonhos, rir e chorar junto. Afinal, é pra isso que vivemos: saborear tudo o que a vida nos oferece!
Grande beijo
TEm algum lugar por ai onde vc descreve aquela situação típica:
Alguém vem conversar com vc, daí vc não entende o que a pessoa fala e vc avisa q é deficiente auditiva… então.. ao invés da pessoa articular melhor os lábios, ela passa a ‘falar mais alto’??? kkkk
Isso acontece direto comigo.. e c vc??
rsrsrsr
😛
Acontece direto sim. Inclusive, tem gente que convive comigo diariamente (no trabalho, por exemplo) e não se dá conta que a minha surdez é quase total, ainda que eu ouça bem com aparelho, mas como não discrimino sons, não entendo a fala sem leitura labial; e ainda assim, fala comigo quase gritando. Já tentei explicar, mas não adianta hahaha fazer o que?
Olá Lakinha!
Sou ouvinte, carioca, resido em Natal -RN. Sou poetisa, compositora, professora de Língua Portuguesa para Surdos, pesquisadora e amante da Cultura Surda. Amei poder sentir o universo do outro ( surdo) pela sua narrativa. Você é uma grande escritora e o mundo precisa conhecer. O seu texto é uma prosa poética, por isso me deliciei saboreando a “melodia ” que vc humana e sabiamente sabe extrair do “mel do dia” e transportá-la incomumente para a forma escrita. Parabéns!
Hehehe sou uma Lobato! 😳
Obrigada pelo elogio! Vou te mandar email, ok?
Beijos