Libras & IC: A História de Guilherme
Tenho comigo a proposta de divulgar casos de sucesso do implante coclear. E quando falamos em sucesso, vem de imediato a idéia de total autonomia auditiva e total ausência de sotaque na fala. Pelo menos, na cabeça da maioria.
No post anterior, eu divulguei alguns detalhes sobre o MEU caso, que muita gente parecia não saber: que eu não tenho tudo isso. Eu dependo da leitura labial, eu tenho sotaque carregado. Ainda que isso não atrapalhe a minha comunicação de forma alguma, porque eu sou surda pós-lingual. Meu idioma materno é o português falado. Leio os lábios bem, me expresso bem, tudo é muito fácil porque eu já estava adaptada ao mundo ouvinte antes do Implante.
Mas e se eu fosse uma criança pequena? Ainda sem um idioma materno estabelecido? Ainda sem compreender a fala por leitura labial? Ainda sem ter o nível mínimo de oralização? Tudo seria diferente…
E é por isso que eu insisto que não sirvo de exemplo para as crianças. Eu amo o IC porque ele foi uma escolha minha consciente, com um parâmetro colossal duplo de comparação: a audição natural e o silêncio absoluto pós-surdez. E isso, as crianças não tem. E porque não tem, a percepção delas é diferente…
Trago, então, uma história que quero muito compartilhar que talvez surpreenda muita gente, já que ela é uma história diferente daquelas que costumam ilustrar as páginas do DNO (sigla do nome do blog), mas ainda assim, uma história forte e bonita. Uma história de amor incondicional. E uma história que, há muito tempo, vem sendo parte da minha história também. As pessoas cujas vidas compartilho por causa do implante sempre me ensinam muito mais do que aprendem comigo. E a Sabine, mãe do Guilherme, tem sido uma excelente professora sobre tolerância, sobre escolhas e sobre a capacidade única de amar.
Mas, vou deixar ela mesma contar essa história:
Lak: Fale um pouco de você, do seu papel de mãe.
Sabine: Me chamo Sabine Schaade, tenho 33 e sou mãe de quatro filhos. Sempre fui uma mãe muito presente, coruja e as vezes me culpo porque acho que eu passo da medida certa. (risos).
Tenho a Mel de 17 anos, a Nicole de 14, o Giovanne de 5 e o Guilherme de 2anos e 8 meses. E é a história do Gui que venho contar para vocês
Lak: Como vocês descobriram a surdez do Gui? Que idade ele tinha?
Sabine: O Guilherme nasceu em fevereiro de 2010 e ainda não era obrigatório o teste da orelhinha, eu fiz, paguei não só o dele, mas de todos os meus filhos. Nem sei te dizer o porque, acho que mais por protocolo mesmo porque em um momento tão lindo que é o nascimento nem passa pela sua cabeça que alguma coisa vai dar errado. Principalmente hoje em dia que o pré Natal é tão acompanhado de perto, mil exames e muitas doenças se descobre ainda dentro da barriga. Como minha gravidez foi tudo bem, não me preocupei.
Então a história do diagnóstico da surdez do Gui nasceu praticamente com ele, Fiquei sabendo um dia depois que ele nasceu pelo teste da orelhinha. Claro que essa primeira falha eles não te falam nada ainda, aliás me falaram que poderia Ser o líquido amniótico que estava dentro do ouvido e dava essa falha.
Não me senti confortável, não foi uma boa notícia,na hora liguei para a minha melhor amiga (que é minha cunhada, madrinha do Gui e Fono) e ela conversou por telefone com a Fono que fez o exame e tudo ficou por isso mesmo, não tinha outro exame para se fazer naquele momento.
Tive alta do hospital 2 dias depois de dar a luz com um papel de retorno para 30 dias.
L: Quando teve o diagnóstico de surdez, deram orientações de como proceder?
S: Apesar de nenhuma mãe já sair com um diagnóstico de surdez da maternidade, essa “falha” no exame te deixa com a pulga atras da orelha.
Eu só pensava nisso, mas curiosamente, depois de 1 semana o recém nascido tem que passar com o pediatra e o pediatra do Gui confirmou que ele tinha liquido ainda no ouvido, ele até me chamou para ver e eu vi.
Isso me deixou um pouco mais tranquila e ele falou que em poucos dias não teria mais nada.
Enquanto isso em casa eu observava o Guilherme. Ele era muito calmo, dormia demais e quase não chorava. Isso me chamou muito a atenção porque o Giovanne estava com 3 anos e fazia muito barulho e o Guilherme nem ligava para isso.
Faltando poucos dias para o retorno no IPO (Instituto paulista de Otorrinolaringologia), aconteceu um fato que me marcou muito e toda vez que eu conto isso em qualquer lugar eu choro. O Guilherme estava no berço dormindo e eu entrei no quarto para guardar alguma coisa. Não sei o que eu fiz, mas o fato é que derrubei uma pilha de brinquedos, fez muito barulho e o Guilherme nem se mexeu. Isso doeu no meu coração e naquele momento sabia que ele “ainda” não estava ouvindo.
Retornamos para fazer o Bera que é um exame mais detalhado e também não teve resposta. Nunca vou me esquecer da Fono Flávia Ribeiro pelo cuidado com as palavras, o carinho que demostrava no olhar quando veio dar o diagnóstico.
Esse diagnóstico na verdade eu já sabia, mas não sabia que ele era bilateral profundo. Chorei, chorei muito, mas por outro lado o fato da minha cunhada ser Fono ajudou muito, mas muito mesmo.
Nós conversávamos bastante sobre as possibilidades do Gui.
Como você soube do Implante Coclear? Vou difícil optar por fazê-lo no Gui?
Minha cunhada que me falou que existia o implante Coclear e no dia do resultado do Bera a Dra Flávia também comentou. Nem conseguia pensar nessa possibilidade no início. Queria uma “cura” sem ser por cirurgia. Gui teve sua primeira consulta na Cilmara (Fono que está com ele até hoje) e depois de 1 semana já estava com o AASI nas duas orelhas.
Nesse meio tempo passei com o Dr. Rubens de Britto Neto e ele falou que o caso do Gui era só o IC.
Não foi difícil optar pelo IC, Lak. Foi difícil aceitá-lo!
Falo isso porque eu não tinha outra opção. O AASI não dava muitos ganhos e o que todos nós da família queríamos era uma reabilitação auditiva.
Então começamos a fazer os exames no Gui e o primeiro foi a Tomografia, nele tivemos o segundo baque, descobrimos a má formação da cóclea nos dois ouvidos.
Isso mudou muita coisa, o Dr. Rubens teve que estudar o caso dele e me lembro como se fosse hoje o dia que o Dr me falou sobre comunicação total caso não desse certo a cirurgia.
Então Lak, passamos o 1º ano do Gui na absoluta dúvida. Não era certeza que ele operaria e no começo o Dr falava até de operar o Gui com uns 2 anos.
Quando o Gui fez uns 10 meses ele fez a ressonância, o Dr Rubens continuou estudando o caso e dele e ele optou por opera-lo.
Eu sabia dos riscos e sabia que poderia não dar certo.
Mas a operação deu certo e por incrível que pareça o Gui tem todos os eletrodos.
Inicialmente, como foi a resposta do Gui ao Implante?
Foi muito sofrido o começo. Quando eu sai da ativação ele parecia até bem, mas em casa ele chorava e se encolhia todo. Tive que voltar para mexer na programação algumas vezes ao longo desse 1 ano e 7 meses que ele está ativado. Ele sempre se mostrou muito sensível quando mudava a programação e ele não suportava muito as mudanças. Cheguei a perguntar para o médico e ele falava para ir com calma porque o caso do Gui era diferente.
Depois de um tempo ele foi se acostumando, mas nunca percebi dele uma relação de amor ao implante como você por exemplo e isso me deixava triste.
Ele usa o aparelho de manhã até a noite, mas ele nunca pede. Isso eu acho muito interessante. Ele usa porque eu coloco ou as irmãs, o pai coloca, mas se deixar ele fica o dia inteiro sem.
Tem dias que ele não quer por, mas sempre insisto, distraio ele com algo e ele acaba usando.
Como você se deu conta que a resposta dele não era de acordo com o esperado?
Passou 1 ano e meio que o Gui estava implantado e fomos percebendo que ele estacionou. Ele percebia sons, olhava quando chamava-mos pelo nome, mas não passava disso.
Minha maior preocupação nem era tanto a fala que não veio e sim a falta de compreensão. Ficávamos sem saber o porque isso acontecia, a audio dele não estava tão ruim e ele sempre foi e é uma criança muito estimulada. A Fono dele já tinha me falado que alguma coisa não estava fechando e em julho ele passou por uma nova programação e ai sim acho que foi o momento mais difícil de todo o processo.
A própria Fono indicou Libras para o Gui, depois dela passei no Otorrino e ele também achou que seria bom para o Gui o apoio em Libras para ajudar na compreensão.
Acho que meu momento de luto foi nesse período. Fiquei frustrada, chocada, revoltada e só chorava.
Foi todo um sonho, sacrificio e dedicação jogado no lixo. Esse era o meu pensamento naquele momento.
Mas algum caminho eu tinha que tomar.
Quero deixar bem claro que nunca tive nenhum preconceito com a Libras, inclusive enquanto o Gui era bebê até pensei em fazer curso, mas a rotina acabou não permitindo. (nota da Lak: a primeira vez que falei com a Sabine, foi aqui no DNO, quando o Gui tinha 4 meses e ela queria saber porquê eu não falava Libras).
Então o problema não era a Libras e sim a frustração do IC não ser tão efetivo para o meu filho.
Você acabou optando por coloca-lo numa escola bilíngue. Alguém te orientou a fazer isso ou a idéia foi sua?
Essa foi uma escolha nossa da família. Fomos orientados sim pelo Otorrino e pela a Fono para usar a Libras como apoio. depois de muita conversa marcamos uma reunião com a diretora da escola e quando sai de lá decidi que seria esse o caminho.
Voltei ao médico para contar e ele apoiou. Aliás tive o apoio de todos os profissionais e isso me fortaleceu e ajudou.
Na verdade toda essa angústia já passou, mas no começo é difícil você juntar Libras e o IC, parece que uma coisa não pode andar junto com a outra. Tem muitos mitos de quem faz Libras não fala e hoje eu percebo que isso é uma bobagem. É possivel sim e dá muito certo.
Lembro de uma frase marcante no seu facebook “Sou grata ao Implante Coclear, mas o Gui se encontrou na Libras. Em um mês, ele teve mais resultado que em mais de 1 ano de implante.”
Como a “comunidade implantada” recebeu essa notícia? Você foi criticada pela escola?
Lak, o Gui não chegou a ir para outra escola. O único lugar que ele frenquentava além da Fono era e é o Espaço Escuta. Estamos lá desde o começo do ano, aliás nas férias quando eu tive essa notícia do Gui, foi no Espaço Escuta onde encontrei o maior apoio, porque foi lá que fui chorar toda a minha mágoa e fui muito bem acolhida.
Lá no Espaço Escuta fui apoiada por todas as famílias do nosso grupo porque todos acompanhavam a nossa batalha.
Como eu tenho o Blog onde escrevo muito sobre o Gui, acabei recebendo sim uns 2 emails de mães “Chocadas” com a minha escolha. Teve até uma que foi além, disse que eu me “bandiei” para a comunidade surda. Fico triste com isso porque eu acho que as opiniões tem que ser respeitadas. Você mesma que é 100% o IC, apóia e divulga tanto por aí, me apoiou! Não entendo qual é a dificuldade das pessoas em aceitar.
E realmente escrevi isso e continuarei escrevendo porque é nítido como o meu filho mudou depois que a LiBRAs entrou na vida dele.
Hoje ele “fala” muita coisa, sabe as cores, os animais, papai, mamãe, os irmãos…É lindo de ver. Hoje realmente meu coração de mãe está tranquilo.
depois de aprender a sinalizar papai e mamãe, ele começou a chamar nós dois.
Isso não me deixa dúvidas de que tomei a decisão certa.
Como você foi recebida na escola, pelo fato do Gui ser implantado?
Muitíssimo bem, fui bem acolhida. Isso não interferiu em absolutamente nada. Acho que muita coisa está mudando dos dois lados, isso é muito bom e quem ganha são os pequenos.
Aliás no colégio do Gui se não me engano tem 8 ou 9 implantados.
Tenho mais contato com as crianças e para elas realmente isso não faz nenhuma diferença.
Aliás tenho aprendido muito lá e está sendo uma troca bem legal.
Além dele, a família tem se comprometido a aprender Libras para conversar com ele?
Sim, todos estamos bem empenhados em aprender. Uma coisa que meu professor falou essa semana e me marcou é que aprender Libras não é obrigação e sim um ato de amor.
Qual a mensagem que você gostaria de deixar às pessoas, surdas e ouvintes, usuárias de Libras e implantadas, sobre ambas as opções caminharem de mãos dadas?
Eu acho que uma nova geração de surdos está ai. Uma geração que a família descobre cada vez mais rápido o diagnostico e corre atrás de uma reabilitação seja por AASI, implante ou Libras. Essa geração me parece que convive muito bem com os dois juntos. O importante é a família estar amparada por bons profissionais, ter a segurança do que está fazendo e principalmente deixar o preconceito de lado e olhar para o bem estar da criança. Isso é o principal!
Infelizmente, o IC não é para todos e eu acho que isso é muito importante ser falado, principalmente quando se tem uma má formação no caminho, mas acho importante tentar.
Hoje eu penso se faríamos algo diferente, mas acredito que não. Mesmo que tivesse
5% de chances nós faríamos tudo de novo.
Eu realmente espero que haja respeito de ambos os lados, surdos oralizados, surdos sinalizados. No fundo são todos surdos mas com culturas diferentes, idealizações e opções diferentes mas na minha opinião são todos vitoriosos porque eu sei que não é fácil para nenhum lado.
Fico a disposição de quem quiser saber de mais alguma informação e gostaria de aproveitar o espaço para conhecer outros casos de má formação já que ainda não é muito falado e divulgado por ser algo mais raro.
Lak, minha história ainda não acabou, tenho certeza que esse é só o começo de um longo caminho de sucesso.
Beijinhos Sabine Schaade.
Sabine é autora do blog: Filhos especiais, pais abençoados.
Este post não tem a proposta de falar contra ou a favor do IC ou da Libras, tampouco espero que desanime pais de crianças candidatas ao IC. É apenas para ilustrar que existem muitos caminhos dentro da diversidade imensa da deficiência auditiva. Cada caso é um caso e para cada um deles, uma solução.
Beijinhos sonoros,
Lak
Li com muita atenção e respeito pela mãe que sempre procurou o melhor para seu filho. Sim temos que admitir que ainda não existe reabilitação da fala e da audição para todos os casos. E que a Libras é um caminho para evitar que uma criança surda cresça sem poder se comunicar. De novo vem à memória a velha e útil frase: cada caso é um caso. A surdez pode ocorrer em diversas etapas da vida das pessoas e isso vai definir os caminhos possíveis. O teste da orelhinha é indispensável ao lado de outros testes para detectar doenças em bebês. Fico feliz que essa mãe tenha encontrado o caminho para ajudar seu filho a superar as dificuldades. 🙂
É, eu também… Beijos
Lak, sou estudante de fonoaudiologia, e atendo um caso semelhante. Sou e sempre fui a favor do IC em casos q não se beneficiam com AASi. Porém, após receber essa menina de 6 anos, que tinha acabado de ser implantada (e totalmente sem linguagem), parei para pensar…
Entre exames, análise de caso, essa menina ficou em privação auditiva e sem contato com nenhuma lingua (ela não faz leitura labial).
Hj acho injusto alguns protocolos de IC que proíbem o uso dos sinais. No caso das crianças é fundamental garantir o desenvolvimento da linguagem, pois ela possibilita o entendimento, o significado das coisas.
As crianças precisam ser inseridas em uma língua desde o nascimento, e no caso dos deficientes auditivos, a libras é a mais acessivel. Não vejo a libras como obstáculo para a criança ser oralizada, e sim um facilitador!
Lógico, cada caso é único, e deve ser analisado, mas o tempo é valioso quando falamos de crianças.
Pois é. Tem casos de crianças que dão certo sem a libras e outros que ela é necessária. Nao pode ser regra nem uma restrição. Sou a favor da oferta da libras quando existe necessidade e/ou vontade. Mas oferta jamais pode significar obrigação para todos. Tem casos tb de crianças que nao precisam dela e nao deveriam ter que aprender obrigatoriamente. Sou contra qq tipo de radicalismo, pro ou contra.
Beijos
Olá Lak, sempre que leio os seus post fico emocionada…O caso do Gui é muito parecido com a minha Mariana, que nasceu surda com má formação na cóclea, aros semi-circulares e nervo auditivo e na primeira avaliação não era candidata ao IC, mas mudando de médico, optamos por tentar e apesar do ganho ser sempre abaixo de qualquer outra criança implantada, já é alguma coisa, e sempre usamos Libras e gestos para dar apoio a comunicação e por consequencia a fala. Valeu por mais esse post !! Parabéns !!
Muito legal 🙂
existem casos e casos. E não ter audição/fala de ouvinte, não significa, necessariamente que seja um caso fracassado. Se a LIBRAS complementa o IC e a comunicação se estabelece, então é o que interessa.
Beijos