O burnout da pessoa com deficiência
Dia desses, Keila Almeida 🏳️🌈 🦻🏿 minha amiga e ex-mentora, postou no LinkedIn:
Precisamos falar sobre a síndrome de burnout da pessoa com deficiência.
Para quem não sabe, Síndrome de Burnout é um esgotamento mental seríssimo causado por excesso de trabalho. O que virou uma realidade frequente no mundo pós-pandemia.
Entretanto, neste dia em questão, Keila foi além e lançou a máxima do Burnout da pessoa com deficiência.
Talvez se visse essa pergunta em outro momento, eu tivesse dificuldade de entender do que ela estava falando. Burnout da pessoa com deficiência? Como assim?
Porém, naquele dia, aquela pergunta veio como uma flecha certeira que atingiu o alvo: burnout da pessoa com deficiência é o que vivi no último ano, em decorrência de uma série de acontecimentos.
Eu convivo com a minha deficiência há 36 anos exatos (completados agora dia 16 deste mês de fevereiro). Simplesmente acordei um dia sem audição nenhuma. Sequela de alguma doença viral, dizem os médicos. Tinha 9 anos quando isso aconteceu.
E da noite para o dia, descobri na prática, como a sociedade olha para uma pessoa sem deficiência e como ela olha para a pessoa com deficiência.
- Quando você não tem uma deficiência, você é visto como uma pessoa com potenciais.
- Quando você tem uma deficiência, você é visto como uma pessoa com problemas.
- Quando você não tem uma deficiência, você merece ser ouvido e respeitado sempre.
- Quando você tem uma deficiência, ninguém quer saber o que você tem a dizer, a menos que seja um discurso inspirador, que mostre para as pessoas sem deficiência como elas estão “reclamando de barriga cheia”, porque “tem gente em situação muito pior se esforçando para viver”. Você é o parâmetro ruim para as pessoas se sentirem melhores consigo mesmas.
As pessoas não querem ouvir suas demandas. Elas não querem que você mostre para elas o quanto o mundo não é acessível, o quanto o comportamento social é excludente, o quanto a mudança de paradigmas é necessária para que o mundo seja respeitoso com toda a diversidade. Esse assunto é chato, é militância, é coisa de gente revoltada.
A proposta social é que você seja um exemplo de superação que resolva por si mesmo todos os obstáculos, de preferência achando engraçado, com um humor autodepreciativo, que inspire as pessoas a se sentirem melhores com elas mesmas, porque você está na pior, mas está rindo disso!
Nesses meus 36 anos convivendo com a deficiência auditiva, 13 deles ouvindo com melhoras auditivas progressivas graças aos meus implantes cocleares, eu percebi que 90% das dificuldades que enfrentei ao longo da vida são de esfera social.
A surdez? O cérebro se adaptou bem a ela. Antes de fazer o implante coclear, o tato, a visão, o olfato, a consciência corporal, com recursos visuais, davam conta dos meus obstáculos de comunicação e interação com o universo ao meu redor. Depois do implante, com a percepção auditiva recuperada durante o uso do implante (não é uma cura, eu dependo deles para ouvir e a tecnologia tem limitações comparada à audição natural) o restante dos obstáculos também foram ultrapassados.
Só o comportamento social do mundo comigo, desde o dia em que acordei sem audição, segue excludente e desrespeitoso. Não tem implante coclear, leitura labial, percepção táctil que transponha o preconceito, a atendimento ignorante e desrespeitoso, o julgamento equivocado ao meu respeito. Continuo tendo que provar meu valor como ser humano o tempo todo, mostrar que minha vida não vale menos porque não tenho audição natural. A cada reivindicação ou demanda por respeito, por acessibilidade, sendo constantemente deslegitimada.
Ver cada falso apoio à nossa causa que surge apenas em momentos estratégicos, em que o assistencialismo barato “deixa a pessoa bem na fita, pagando de super-herói que ampara os fracos e oprimidos”, mas que, na prática não muda a realidade excludente.
Vivendo uma briga constante para ter os direitos mais básicos serem atendidos: ter acessibilidade, ter educação inclusiva que olhe individualmente cada aluno com deficiência, ter acesso a benefícios que te pertencem, mas que as pessoas duvidam porque acham que deficiência tem que ser visível porque é “tudo a mesma coisa”.
Uma interminável exigência da sociedade por um comportamento impecável, que resolve tudo por conta própria e inspira todos 24h por dia, para que assim “ninguém se lembre que você tem uma deficiência”, já que esse assunto é muito chato para o debate social.
Ter um trabalho exaustivo cansa? Com certeza!! Já tive desses e não desmereço a reclamação de quem sucumbe à Síndrome de Burnout.
Mas, sabe algo que cansa existencialmente? Viver uma vida de negligência abusiva, de desrespeito às suas solicitações mais simples e cada vez que você conseguir emprego para se manter, ter que educar as pessoas para que elas entendam que você tem sim o direito de preencher aquela vaga de emprego, que você não está roubando a vaga de um “pai de família”, porque você mesmo também tem família, porque você mesmo também tem uma vida com necessidades e contas para pagar.
Precisamos sim, Keila, falar sobre o Burnout de viver tendo uma deficiência numa sociedade extremamente capacitista. Um Burnout que não tem férias, que não tem mudança de carreira que resolva, porque a deficiência vai te acompanhar onde você estiver.
Precisamos falar de um cansaço existencial de viver numa sociedade que tendo oportunidade vai te dizer que seria melhor você morrer, porque não ter todas as funcionalidades padrão é pior que a morte, que sugere que a vida de quem tem uma deficiência não vale nada.
Mas, enquanto essa conversa não chega, ‘bora secar as lágrimas e encarar que todo dia é um novo dia, já que a deficiência te acompanha até nas crises de esgotamento mental.
Viver é a única escolha lógica que temos. E, embora nos neguem, este é nosso direito mais básico de existência.