O estilete falante

Que eu amo escrever um blog sobre as desventuras de uma deficiente auditiva, disso, não tenho a menor dúvida. O problema é que, tenho que confessar, nunca vivi muito em função da minha deficiência e tem dias que me dá vontade de chutar o balde e falar de outras coisas.

Sei que é importante falar de todos os lados de como é bom, ruim, engraçado e grotesco de se conviver com uma deficiência, já que 99% das pessoas que leem esse blog querem informação e compatilhar experiências (coisa que eu considero fantástica).

Mas, por outro lado, eu escritora de longa data (com nada publicado, claro) e de vez em quando, me dá uma baita vontade de colocar algum texto antigo, mesmo quando não tem nada a ver com surdez, só pelo prazer de ver o texto nesse site com layout fofo.

Daí hoje, vou dar aquela chutadinha básica no balde e colocar meu texto favorito aqui. Atenção, ele foi escrito em 31/07/2004, não tem nada a ver com meu estado de espírito atual, é apenas um texto que eu amo.

‘Estava sentada em frente à minha mesa, enquanto o sol raiava, depois de uma noite de amarguras, brigas e sofrimento que parecia não ter fim. Mas teve, porque o sol tingia de rosa o céu azulado da manhã.

Olhei e vi meu estilete no porta-canetas, lindo e reluzente. O estilete, devo dizer, porque senão algumas pessoas poderão imaginar que me refiro ao porta-canetas de papelão com quadradinhos coloridos.
Senti um impulso crescente de cortar os pulsos, porque me sentia incrivelmente deprimida.
Não que eu seja suicida em potencial, tratava-se apenas um surto de total loucura, causada por uma sensação de impotência em relação a vida. Mas, se eu for pensar bem, acho abominável morrer com os pulsos cortados, a pessoa morre muito lentamente. Ademais, seria extremamente grotesco alguém ter que limpar meu sangue ó-negativo, do chão marfim do meu quarto.
De repente, o estilete arregalou os olhos, o que me fez pular da cadeira e dar um grito sem voz.
O estilete saiu do porta-lápis e veio na minha direção, enquanto eu olhava com uma cara de admiração e espanto. Sentou na beiradinha da mesa, tirou um maço de cigarros do bolso, me ofereceu um, que recusei dizendo: ‘Obrigada, mas não fumo’. Acendeu um cigarro com um Zippo em miniatura, que trazia os dizeres ‘Sou gilete mas não sou gay’, que ele teve que ler para mim, porque as letras eram pequenas e eu estava sem óculos.
Deu uma baforada lenta e divagativa, tirou algo da ponta da língua, com a mesma mão que segurava o cigarro. Por fim, disse:
– Por que você pensa em se matar, Lakinha?
– Porque tudo anda dando errado na minha vida, já faz um tempo. Gosto de uma pessoa que se lixa para minha existência. Não consigo um trabalho decente. Já tenho quase 30 anos e ainda moro com minha mãe… – E outras lamuriaçõezinhas baratas, que qualquer depressivo consegue fazer, sem muito esforço, respondi eu.
O estilete riu da minha cara, despertando uma certa antipatia da minha parte. Então falou:
– Você acha sua vida ruim!?
– Claro, se eu achasse minha vida boa, não tava aqui me dando ao trabalho de discutir com você. – Grunhi, eu.
Ele riu de novo da minha cara.
– Olha, se eu fosse analisar a minha vida com essa sua lógica, eu me atirava da mesa, sabe!? – Disse ele.
Olhei para ele, para o tamanho da mesa e para o chão. Calculei que, pelo tamanho dele, seria a mesma coisa que eu me jogar de um prédio de 4 andares. Ou seja, ele teria mais chances de sobreviver do que de morrer, principalmente por ser revestido de plástico.
Eu fiz pouco caso do que ele disse.

E ele continuou:
– Sou apenas uma lâmina de corte. Sirvo para cortar papel, papelão e outros objetos do tipo. Aí, uma menininha mimada, que não resolve o que quer da vida, pensa em me transformar num assassino.
Coloquei a mão no peito, sentindo remorso do que tinha acabado de fazer. Pois é, não tinha pensado nos sentimentos laminais dele.

Prosseguindo, o Estilete disse:
– Como eu seria visto depois, pelos lápis e canetas, com quem convivo diariamente, e até aquela escova de dentes, que ninguém sabe o que faz num porta-lápis? O que eles iriam pensar de mim? Eu seria um pária, seria renegado pela sociedade dos materiais de escritório. Seria levado por policiais, que me arquivariam ao lado de facas e revólveres marginais.
Comecei a realmente entender o que ele dizia. Quando a gente está mal, não pensa em mais ninguém, só em nós mesmos. E eu quase transformei um estilete decente, educado, puro e temente a Deus num assassino, contra a vontade dele.
– Puxa, desculpa, seu estilete. Eu realmente não pensei… – Falei com uma sinceridade impressionante.
– Pois é, você não pensa. Você precisa parar de se lamuriar e pensar nos outros. E em você mesma. Você é uma menina bonita, simpática, decente. Tem vários amigos, é talentosa. Escreve muito bem. Fotografa melhor ainda. Não tem nem lógica desistir de viver.
Fiquei surpresa com a sabedoria do estilete. Senti vergonha de ter pensando em tirar a própria vida.
Por fim, ele deu uma última baforada no cigarro e apagou-o na mesa. Olhei com reprovação, pois isso tinha feito uma mini-micro mancha na madeira.
Estendeu a mão na minha direção.
Eu sorri de volta e estendi minha mão na direção da dele, imaginando que selaríamos um pacto de amizade mulher-estilete.
Mas, em vez disso, o filhodaputazinho cortou meu dedo, me dando um gancho de direita digno do Popó e riu da minha cara:
– Otária, pensa que eu ia deixar barato você quase me transformar num assassino?! – Berrou ele, rindo muito e levantando-se em cima da mesa. – Qualé, vai encarar?!
Levei o dedo, que sangrava, à boca e não tive dúvida, taquei o cretino no chão, chutei-o pelo chão do quarto, fui à direção dele, dei uma voadora e um jab, abatendo o ordinário inanimado.
Por fim, trouxe o infeliz de volta para o porta-lápis, porque poderia precisar cortar algo e me causava repulsa a idéia de ter que comprar outro representante dessa racinha do cacete.’
Moral da história: Confie nas pessoas, mas nunca, num objeto cortante!! Eles são todos uns canalhas.

Hihihi beijnhos

Lak

35 Resultados

  1. Alex Martins disse:

    Lak, depois eu volto pra ler e comentar o texto, mas veja a opinião de alguém que faz parte de outra minoria…rs

    Deixar o espaço apenas pra falar do universo dos deficientes não é de uma forma ou de outra querer dizer que esse universo paralelo é mesmo necessário? Vejo da seguinte forma, escrever também sobre outras coisas provavelmente servirá para mostrar aos leitores que você fala de pessoas, pq deficientes todos somos em maior ou menor grau em uma situação ou outra.

    Deficientes fazem as mesmas coisas que todo mundo faz, pq não mostrar isso aqui tb? Mostre seu lado cronista.

  2. Miriam disse:

    Esse estilete é muito traiçoeiro!
    Gostei do texto…embora eu goste muito mais de ler sobre a sua vida, sou xereta!^^

  3. Maysa disse:

    hahahaha adorei! Mas se fosse comigo ele ia ficar mais bravo ainda, eu iria fumar todos os cigarros dele hehehe 😛 Beijo Lak

  4. Edelson Lopes disse:

    Olá Lak,

    Belo texto! Apesar do estilete ter sacaneado conrtando o seu dedo, ele deu uma bela lição antes disso, com o que ele disse.

    Ah e concordo que aqui devem ter textos que vão além do universo da ‘matrix’ como diz o Jairo e seu talento permite ultrapassar essa fronteira.

    BjuS!

  5. Lu disse:

    Ah! Adorei o texto!!
    Acho ótimo você colocar esses textos aqui também…. todo mundo que “passa” por aqui, passa pq gosta do que vc escreve! Chute esse balde mais vezes!!
    Beijinhos! 😉

  6. Bia disse:

    Gostei muito do seu texto, como sempre me fez pensar numas coisas que acontecem comigo.
    Ah, não vejo nada de mal em você escrever sobre outras coisas aqui, adoraria poder ler outros textos seus.

    Beijo pra tu!

  7. Bruna disse:

    Muito bom o texto!
    Quando eu fiz o meu blog, também achava que seria difícil ter que “pensar” na doença todos os dias. Mas com o tempo a gente vê que é forte e aguenta.
    De qualquer forma, continuarei lendo seus textos, sendo sobre sua vida, sobre o mundo, sobre qualquer coisa.
    Bjs

  8. Cybelle disse:

    Ah Linda, coloca mais textos assim…adorei…
    Poderia instituir: a sexta feira livre….vale postar qualquer coisa, relacionada ou não ao universo matrixiano…..rsrsrs
    O que acha???
    Bjokas 😎

  9. Juca disse:

    kkkkkkkkkk…. tem uma amiga minha que às vezes surta tb e fala que fica afim de sair dando “vuadêra” em tudo!!! 😀

    eu penso sim em me suicidar… mas só no caso de doença terminal bem diagnosticada e sob condição de sofrimento insuportável! 😀 … antes eu “gostaria” de morrer de câncer e, antes ainda, morrer por uma mulher! 😛 (que mereça esse meu gesto, claro! 😳 )

    adorei seu conto!!! beijos!!!

  10. Elias disse:

    Oi Lak, acompanho seu blog, há algum tempo, suas hstórias são muito interessantes e seus textos são uma delicia. A págna do seu blog é uma das que abre automaticamente no meu navegador.
    Grande abraço

  11. Gislaine Oliveira disse:

    Uiaaa, que estilete inteligente…sacana, mas inteligente…he he he!

    Poxa, acho que este blog deveria ser sempre livre, pra falar o que der na telha, e não ficar ‘preso’. Você é mais que demais em tudo que escreve!

    Abraços, otimo findi!
    😎

  12. FABIANA disse:

    Lak achei o texto delicioso 😈 (seu estilete vampirinho). Pode escrever mais e teve uma fase da minha vida que passei por muitos consultórios, hospital, laboratórios e a conversa era sempre a mesma: o q tinha levado as pessoas até ali. Pode nos presentear com mais textos como este. Parabéns ! ! Bjs

  13. Misal disse:

    Olá!
    Conheci o seu blog através do blog SULP, durante as minhas pesquisa para o meu novo blog. Tenho surdez bilateral flutuante de grau modertado a severo, devido a uma doença, Síndrome de Cogan, desde há 3 anos e tal. O meu 1º blog era sobre a doença, de início, mas aos poucos foi-se transformando e à medida que eu me fui acostumando com a doença, comecei a escrever mais sobre outras coisas… Acho que é natural, tal como você diz: queremos informar os outros sobre nossas dificuldades auditivas e informar sobre o que fazemos para as superar, mas também nos apetece escrever sobre outras coisas, pois acima de tudo somos pessoas! Então, criei meu 2º blog (olhos que ouvem, mãos que falam, esse só sobre surdez e sobre a minha doença; aí escrevo só sobre esses assuntos; no outro, escrevo o que me apetece, sobre a surdez ou sobre outros assuntos).
    Espreitei o seu blog e li os dois últimos posts (ainda vou ler o resto). Gostei muito fa forma como você escreve, da sua sensibilidade e do seu sentido de humor também. Vou voltar, ok?
    Ah…chamo-me Inês (Misal é o meu nick) e sou portuguesa. Já faço parte da comunidade SULP!! 😉
    Misal

  14. Rogério disse:

    Lak, já falei aqui sobre seu talento para transformar em palavras o que vem da alma. Quando pari meu blog a idéia era tratar da questão Hepatite C (cada um no seu quadrado), acabou virando aquele samba do crioulo doido que você conhece e gosto muito do jeito que ficou. Nada contra espaços temáticos, pelo contrário, mas vejo em você uma fonte de deleite literário que transcende a questão central que provavelmente motivou o blog. Então, por favor, de vez em quando manda uma metáfora dessas, nem que seja para desopilar o fígado. A comunidade agradece. Um beijo, linda.

    • Avatar photo laklobato disse:

      Olha, teve umas pessoas que foram contra, se você der uma lida nos comentários, verá. Fico dividida….
      Se bem que esse texto não foge taaaanto assim à premissa do blog. De qualquer forma, faz pensar. hehehe
      Beijinhos

  15. Oi Lak!
    Que texto incrível! Não há alguém no mundo que não tenha um dia de loucura absoluta, de vontade de se afogar num copo d’água rsrs Mas esses dias são os que mais nos enchem de força e energia porque percebemos que somos mais do que nossos pensamentos, somos mais do que nossas dificuldades. Mas tem dia que é bom simplesmente escrever o que estamos sentindo.
    Vi as fotos do encontro com o Jairo e quem sabe na próxima aparecemos por aí.
    Beijos,
    Marli

    • Avatar photo laklobato disse:

      Verdade, Marli. A tristeza assume seu propósito, na medida que a gente consegue arrancar algo belo dela…
      Torço para que vocês venham sim no próximo encontro! O primeiro (de muitos, espero) foi fantástico!!! Mas seria melhor com vocês aqui! Beijo

  16. Rita (fessora) disse:

    Oi Lak !!
    Adorei o texto !!! Adoro ler !!! E adoro escrever tbém… Colocar no papel coisas que estão dentro de nós, seja na cabeça ou no coração !!! Seja por felicidade ou por tristeza… Vira um desabafo… Depois é bom reler, pra saber o que pensamos rs É… pq a cabeça vai a mil… as mãos parecem não acompanhar o raciocínio. Seus sentimentos vão se transformando em palavras. Vamos sentindo um alívio… O pensamento vai clareando…
    É muito louco !! E eu adoro isso !!!
    Parabéns pelo texto. Faça mais isso. Assim refletimos…
    Bjo Lak !!

  17. pedra disse:

    Sou infiltrado e tenho um filho deficiente auditivo. Adoro seu blog que conhecí através do “assim como voce”. É sempre bom variar um pouco, por isto gostei muito da história do estilete.

  18. Mariana disse:

    Oi Lak!!!
    Adorei o texto!!!
    Embora fuja um pouco do teu propósito inicial, este texto nos traz uma lição de vida, e acaba ajudando também…
    Por mim vc pode colocar alguns textos assim… que nem a Cybelle sugeriu… “Sexta-feira livre”… gostei!! ehehhe
    Beijos e uma ótima semana para todos!! 😀
    Mary

    • Avatar photo laklobato disse:

      É verdade que, inicialmente, eu achei que fugia à proposta do blog. Mas, depois, dado os comentários, notei que esse texto mexe com as pessoas de forma similar, portanto, não fugiu tanto assim não hehe
      De qq forma, fico feliz que você tenha gostado também!
      Beijos

  19. Adriana disse:

    Lak, ler sobre a deficiência auditiva nos ensina muito. Eu, pelo menos, tenho aprendido a conviver e respeitar os limites do meu maridão charmoso que, há algum tempo, vem sofrendo com a sua crescente dificuldade de escutar (na maioria das vezes, no sentido literal do termo). Mas para além disso, você já deu mostras de que tem muito, muito mais pra nos dizer. Arrisque-se! Escreva o que der na sua cabeça: a gente tá aqui pra te ouvir.

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