O filme “Um Lugar Silencioso” na visão de uma implantada

Se você já ouviu falar do filme “Um Lugar Silencioso” certamente já ficou sabendo que língua de sinais e implante coclear fazem parte da trama. Mas não vá ao cinema esperando assistir um filme ativista sobre surdez. A surdez é pano de fundo da história. “Um Lugar Silencioso” é um filme de terror “Cloverfield Style” – com monstros assustadores e pouca explicação. É um filme para ir com um balde de pipoca e preparado para pular da cadeira algumas vezes, porque os sustos estão presentes. E são motivados de forma auditiva. Nesse aspecto, me lembrou bastante as ferramentas de assustamento de A Bruxa de Blair: o som pode ser extremamente assustador.

Não me lembro da última vez na vida que me interessei de assistir um filme que fale sobre surdez (ou implante coclear). Não assisti aquele seriado sobre as irmãs trocadas na maternidade, não vi Família Berlier, nem Extraordinário (esse último, por medo de chorar até desidratar mesmo). Isso porque eu não me identifico com a surdez da forma como costuma ser retratada no cinema. Apesar de ter deficiência auditiva há 31 anos e escrever sobre o assunto há 9, a surdez para mim é mais um detalhe da minha vida, ao invés de ser o centro dela. Filmes com essa temática costumam colocar a surdez como centro e não me atrai.

Sendo assim, o filme “Um Lugar Silencioso” já ganhou um mérito especial, só pelo fato de me interessar de ir ao cinema. Inclusive porque prefiro assistir Netflix e o filme tem que ser muito muito interessante para me levar às telonas. Foi o caso deste “Um Lugar Silencioso”.

Assista ao trailer:

Confesso que fui ao cinema por ter me interessado pela trama: usar o silêncio e o som para criar uma atmosfera de medo, de conforto, de diálogo sem palavras com o telespectador – acredite, nada disso é spoiler, o próprio nome do filme dá a entender que o tema é esse. E não decepciona! Já nos primeiros segundos do filme, você perceber que o nome faz jus à história. Sendo assim, a língua de sinais e o implante coclear entram como coadjuvantes para amarrar a trama principal.

Agora sim, dando spoiler:

Não leia a partir daqui, se você não tiver assistido o filme, combinado? Vá lá assistir e volte depois! Tchau!


Logo na primeira cena, o silêncio aparece de forma incômoda. Filmes geralmente começam com uma música de abertura. Em vez disso, o único som é de folhas arrastadas pelo vento. Dentro do que aparenta ser um mercado, eis que surge uma criança correndo na ponta dos pés, como se tentasse evitar fazer barulho e, logo em seguida, nota-se uma adolescente, Regan (Millicent Simmonds – a atriz é usuária de implante coclear na vida real), usando um implante coclear. Para quem é familiarizado com o tema, é possível reconhecer a antena do processador da Cochlear, Nucleus 5 ou Nucleus 6 (não consegui ter certeza).

A cena que se segue mostra a família Abbott e dá dicas da situação que os personagens se encontram: todos descalços, evitando fazer qualquer tipo de barulho. A família se comunica por gestos a maior parte do tempo e como tudo se passa em um silêncio quase absoluto. Em poucos minutos, descobrimos o motivo desse silêncio: criaturas assustadoras e mortais são atraídas pelos sons.

Uma coisa que todo implantado vai notar é que, aproximadamente um ano depois, Regan reaparece com um outro modelo de processador (provavelmente da Advanced Bionics, por causa do microfone no gancho). Isso causa estranheza, já que na vida real, quem utiliza uma marca não conseguiria usar outra. Com o desenrolar do filme confirmamos que, apesar de Regan usar o processador o tempo todo, ela não está escutando com ele. Descobrimos que seu pai (John Krasinski) conseguiu juntar um estoque de processadores e aparelhos auditivos de várias marcas e está tentando consertar o processador de Regan.

Nesse ponto, o pânico tomou conta do meu ser. Não por conta dos monstros ou coisa que valha. Peguei-me pensando como seria minha vida num mundo pós-apocalíptico: como seria não ter mais acesso à peças de reposição, a um upgrade de processador ou, pior ainda, sem qualquer perspectiva de conseguir realizar um mapeamento. Porque, como sabemos, sem os mapas esporádicos, alguma hora, iríamos nos encontrar cara a cara com a biologia, em que a surdez se faz presente o tempo todo.

O medo que eu senti, pode ser visto na reação de Regan, quando seu pai pega um processador cheio de modificações na antena e pede para ela testá-lo: a menina chora e se nega a colocá-lo, dizendo que nada adianta! Isso me fez lembrar da minha vida pré-IC, nas dezenas de vezes que fui experimentar um aparelho novo e dava aquele aperto no peito de não saber porque estava tentando mais uma vez, já que provavelmente ele não iria resolver a minha situação como todos os outros que tinha experimentado.

Diante da recusa de Regan, o pai diz o que qualquer pai diria nessa situação:
“Nós vamos continuar tentando até funcionar”
Ela diz “Chega!”, simplesmente pega o aparelho na mão e vai para seu quarto.
Mas, apesar dessa frustração gritante, ela tenta mais uma vez testar o IC, que mais uma vez não funciona e faz as lágrimas de Regan rolarem pelos olhos – e  as minhas imaginando-me na situação dela.

A frustração com esse silêncio imposto não é exclusivo de Regan, facilmente enxergamos que todos os personagens, de alguma forma, sentem falta dos sons, das músicas, das vozes uns dos outros, de falar alto. O silêncio virou uma forma de sobrevivência, mas em momento algum muda a natureza ouvinte dos personagens.

A surdez de Regan é uma metáfora para a situação de enclausuramento silencioso em que todos foram confinados e a língua de sinais e o implante coclear marcam presença como as únicas formas possíveis de fugir dessa clausura.

Apesar de não funcionar como deveria, o implante coclear de Regan ganha um papel fundamental na história de uma forma surpreendente que nos permite compreender a importância desses elementos na trama.

Fim dos spoilers


Quando o filme acabou, senti um nó na garganta, resultado daquela vontade de chorar misturada com vergonha (quem é que chora de ver um filme de terror?). Mas é que foi uma sensação de desforra, por ter ido ao cinema, em 1999 assistir “A Bruxa de Blair” e ter saído frustrada do cinema, sem ter entendido nada da história. Eu não usava implante coclear, sabia que os efeitos eram sonoros, mas tentei ver assim mesmo!

Foto: Paramount Pictures

“Um Lugar Silencioso” teve o efeito oposto. Graças ao fato de hoje ser implantada, eu pude apreciar cada barulhinho importante ou assustador que o filme trazia para envolver a plateia. E quando terminou, meu cérebro só conseguiu pensar “Nossa, que enredo sensacional”.

Pode ser que você não tenha achado tudo isso, porque cada um tem a própria percepção dos filmes. Mas para mim, como implantada, foi uma sensação indescritível perceber que o implante coclear é simplesmente um parte integral da trama. Não está ali por acaso, nem gratuitamente, nem para defender, nem para condenar. O IC está ali como um elemento chave para o desenrolar da história.

Se você gosta de filme de monstros e terror pós-apocalíptico, recomendo!

Beijinhos Sonoros

Lak Lobato

5 Resultados

  1. Regiane disse:

    Uauu.. estou doida pra ver esse filme.. mas o medo me consome.. terror.. dá medo.. mas irei ver..
    gostei da sua opinião.

  2. Juliana Malafaia disse:

    Eeeeeeeeeeita, agora mais do que nunca quero assistir

  3. Roner Dawson disse:

    Muito bem comentado e muito válida a identificação.
    Logo que vi o IC na cabeça da menina, dei um sorrisinho de “esta é das minhas”, rsrs… mas logo fiquei preocupado, tipo… “onde ela vai conseguir baterias, my God of sky!!!”

  4. Luiz Abreu disse:

    Muito interessante perceber o impacto do filme nas pessoas que também utilizam o implante. Mesmo eu não utilizando, me peguei pensando no desespero da Regan cada vez que um implante não funcionava. Muito boa sua crítica.

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