(re)compreender o ato de ouvir
Tenho ciência que jamais serei uma pessoa como a maioria. Não porque não possa ouvir e escutar perfeitamente com o IC algum dia, mas porque a minha surdez sempre será parte integrante da minha personalidade, já que perdi a audição cedo e ela foi um dos alicerces bases que me moldaram.
Três meses depois da ativação, depois de 23 anos (incompletos) de silêncio, tem sido uma jornada de reencontros e descobertas que eu tento narrar pra vocês, mas em vão. Gostaria que quem lê esse blog pudesse sentir exatamente as emoções que sinto, mas me falta talento para transcrever com precisão, dado o calor da emoção de descobrir um som novo ou reencontrar um antigo.
Mas, mais do que ouvir, o que preenche o caminho de retorno à audição é o escutar, o compreender, o discriminar. E perceber como meu cérebro, tal como uma criança, dá formas mentais aquilo que ouve. Ouvir o latido de cachorro e visualizar rapida e mentalmente um cachorro. Ouvir uma lata de refrigerante sendo aberta e pensar “oba, refri!”.
E, como não é mais um processo natural e eu não tenho mais 1 ano de idade, preciso da ajuda da fonoterapia para conseguir refazer, com o implante, o caminho natural do som, dentro da cabeça.
Nunca fui de levar a fonoterapia a sério. Eu gostava de enrolar a fono e bater papo. E por 10 anos, foi assim, pouquissimos exercicios de estimulação auditiva e exercitação da fala e muita conversa e bate papo.
Hoje, sem aquela necessidade de ser compreendida – embora eu adore a Aline, claro, ela é fantástica – tenho dado lugar aos exercícios tão necessários a um deficiente auditivo que reaprende a ouvir.
No exercício, ela mostrou-me 6 figuras e falava o nome de uma delas, sem que eu pudesse visualizar os lábios (ou seja, sem o apelo visual que dependo). A principio, o exercício era simples, porque bastava prestar atenção na estensão da palavra. Não há como confundir FLOR com TELEFONE, pelo tempo que a sonorização dura, pouco importanto se compreendo ou não cada som por si.
Depois, era a vez de escutar palavras com o mesmo tempo de som, todas dissílabas. Carro, casa, bola. Qualquer criança ouvinte consegue diferenciar essas palavras com facilidade, mas pra mim, ela soam absolutamente similares, simplesmente porque a presença e ausência de som é similar. Tal como se o som limitasse-se a preto e branco e eu só pudesse enxergar luz e sombra.
Mas, com o implante, os sons começam a tomar forma. Não da primeira vez que ouço, mas na terceira, quarta tentativa, a palavra BO-LA começa a ter um formato específico e fazer – ainda que com um demorado tempo de resposta – meu cérebro perceber que trata-se de um objeto específico, bola.
Não quis demonstrar emoção demais para a Aline, porque não queria que ela parasse a terapia, mas compreender (sem chutar) a palavra “bola”, fazer uma imagem mental dela ao que ouço bo-la (e não apenas tentar enxergar a palavra em si) representa um passo enorme nesse caminho. É a primeira vez que o som da voz passa a ser significativo, passa a formar uma imagem mental espontâneamente no meu córtex cerebral.
E, junto com a bola, surge a esperança de poder compreender a voz, sem o auxílio da leitura labial, algum dia.
Mas, como o destino gosta de ser cruel, tive que sentir a pele a necessidade urgente de ouvir, saindo do consultório da fono, para buscar meu celular em casa e ficar presa no elevador. A unica coisa possivel, pra avisar o porteiro para que ele me soltasse manualmente, era usar o interfone. Eu podia claramente ouvir a voz dele, mas sem compreendê-la. E nessa hora percebi que o caminho que tenho a trilhar ainda é longo.
Porém, percebi que a voz dele, mesmo que não me dissesse nada de compreensivel, me tirava do total isolamento e isso, por si, também tem seu peso e sua importância: calma, um passo de cada vez, mas cada passo com seu valor.
Hehehe desculpem se o texto ficou confuso, mas queria compartilhar as emoções das últimas horas…
Beijinhos sonoros,
Lak
Não vi nada de complicado no seu texto, e acho super bacana você dividir suas conquistas diárias conosco!
Beijo pra tu! 😉
Obrigada, Bibibia!
Beijos
Nada confuso, o fato de isso não fazer parte do cotidiano de muitas pessoas
pode ser difícil de explicar mas da para acompanhar perfeitamente.
Interessante mesmo é como a leitura labial acaba se incorporando mesmo sem a gente perceber. Quando vou fazer audiometria costumo fechar os olhos para não me influenciar pela visão, parece que ouço melhor.
Outra batalha complicada é fugir da adivinhação, fonte de todas as piadinhas de surdo…
Fulano é um banana ou um sacana? E tome lista de palavras para repetir sm errar…
Faço audiometria em português e em espanhol quando estou na Argentina
e fico feliz ao obter bons resultados (com aparelhos óbvio) nas duas línguas.
Com seu exemplo estou criando coragem para encarar fonoterapia ou pelo menos novas regulagens dos aparelhos que estão “fora de foco”.
Acompanhar você é uma delícia! 🙂 🙂
Pois é, pra quem tem surdez profunda, a leitura labial se torna uma muleta muito difícil de soltar. É um trabalho lento e exige paciência. Não adianta repetir bola o tempo todo, porque não vai ser sempre que eu irei entender, por enquanto. Mas ter entendido uma vez, já foi uma emoção e tanto. Não deu pra deixar de dividir…
Beijinhos
Caraca!!!!
Muito mexida com esse seu texto! Primeiro fiquei completamente exultante com a sua descrição do seu reencontro com a bola… depois completamente tensa pela sua “prisão no elevador”. Balde de água fria…
Enfim, o seu texto estava bastante claro, mas os sentimentos que desperta, esses sim ficam brigando dentro da gente! Será que foi isso que vc sentiu? 😯
Ainda tenho que te dizer que comemorei o aniversário de su madre ontem com muitos pensamentos sensacionais enviados diretamente para ela! 😀
E… Rubem Alves rules!!!! 😀 😈
Beijocas
Foram sentimentos conflitosos sim. E muito próximos, em menos de uma hora, tive o êxtase de entender uma palavra e a agonia de perceber que ainda dependo da visão. Mas, de qualquer forma, o Implante é válido, porque reconheço a voz humana com clareza (embora não discrimine o que ela diz) e isso já me conforta. 3 emoções distintas e interligadas…
Beijinhos
Compreendo inteiramente o que escreveu Lak! Na verdade há meses resolvi tirar da minha mente um texto sobre este aspecto, e nem sei como me sai bem com aquilo! Vou ver se logo tento encontra-lo e depois posto aqui até porque refere nos contornos da sombra por detrás da palavra propriamente dita.
Mas as emoções, podem ser tantas que nem sempre sai perfeita no papel cibernético. Parabéns pelos progressos! Parabéns para a sua mãe 🙂
Até já!
Sun
Vou adorar ter texto seu aqui, Sun… Você sabe que foi o seu “estrelas sonoras” que serviu de motivação em todos os momentos que, antes da cirurgia, os medos pareciam me paralizar… Beijinhos
Gata, sou um curioso nato, profundo, desesperado ahahahah… Claro que vc tem talento com a escrita, mas estou de acordo que as palavras tem o seu limite, por mais que a gente bata e aperte a elas…. a sensação mais profunda é só de quem vive… e eu, fico aqui, doido pra saber com é ahahahhaha… beijossss
é, essa emoção não consigo descrever, não existe palavra que a explique. É como se eu tivesse nascendo de novo, só que, desta vez, consciente do que e espera.. complicado, entende?
Beijinhos
Oi querida, estamos numa nova fase de nossas vidas, e é sempre importante compartilhar da melhor forma que podemos… É maravilhoso, é trabalhoso, é uma batalha, mas a vida é isso aí… vamos que vamooosss!!! =)
A gente chega lá!
beijinhos sonoros
Namastê
Sim.. e quem quer viver, enfrenta qualquer coisa, porque vale a pena, né?
Beijinhos
Oi LAk, tenho te acompanhado nesta jornada mesmo antes do implante. Não tenho comentado, mas seus textos encantam com a clareza com que vc fala das suas emoções. Não te falta talendo tampouco precisão. O que vc escreve, percebe-se, vem transbordando de emoção e dos sentimentos verdadeiros da descoberta. Na verdade da vontade de tem perturbar com um monte de perguntas rs, mas vc vai postanto e aos poucos tudo se esclarece. Com certeza vc jamais será como a maioria das pessoas, pois vc é especial assim como vc, é. Um grande abraço.
Elias
Puxa, valeu… que bom que você consegue captar… porque eu não sei se chega a altura do que eu sinto, de verdade…
Beijão
Oi! Hoje me lembrei de voce. Uma coisa doida, ja que nao te conheço. Estou estudando frances por causa da possibilidade de ir a algum pais francófono pelo trabalho, o que claro, me faz aprender esta lingua de uma vez por todas. E para mim, o frances parece exigir muitíssimo da compreensao auditiva para distinguir tantas palavras que se juntam, que sao pronunciadas de maneira parecida ou até mesmo iguais, sem falar que parece q se escreve de uma maneira e se fala de outra. O lembrar de vc foi pelo fato de pensar como eh q uma pessoa que nao ouve entao fez para aprender? E fazendo um link com este post, se eu fico contente a cada distinçao que consigo fazer com o frances, posso imaginar voce com cada palavra nova que consegue identificar. Parabéns mesmo e que muitas palavras novas venham, q se juntem em frases e que se juntem em belíssimas melodias faladas. Me desculpe se demonstro tanto desconhecimento da sua realidade.