Surdos e Ensurdecidos
É comum eu ouvir de algumas mães que não vêem a hora do filho crescer e contar pra ela sobre a percepção de ouvir cada som com o IC, tal como eu faço.
Ainda que eu entenda que as mães falam isso com a intenção de terem a confirmação de que escolheram o melhor para os filhos, é importante considerar que por mais bonito e poético que sejam meus relatos, eles tem um texto nas entrelinhas bem triste. De alguém que já ouviu e deixou de ouvir. De alguém que tem uma perda enorme nos ombros. De alguém que teve que lidar com a tristeza de ser forçosamente presa ao silêncio, que não considerava natural. Meus textos relatam a realidade de um ensurdecido e não de um surdo.
Uma criança que nasce surda e cresce implantada nunca vai ter essa dor para relatar. Ela vai crescer ouvindo de forma “natural’ (através o IC), mas com a percepção similiar a de um ouvinte, que acha o som normal, óbvio e que passa despercebida a menos que seja mega especial (tipo uma música, a voz de uma pessoa especial, etc). Uma criança implantada com sucesso no IC vai simplesmente ouvir, tal qual o faz um ouvinte.
Particularmente, acho meus textos mais antigos bem bonitos – alguns até meio melosos – mas eles eram bem melancólicos também. Quando leio relatos meus de reencontros sonoros, principalmente os que falam de ouvir coisas bonitas ou banais achando lindo, eu sempre penso em algum momento da minha vida que quis ouvir e não pude. Eu não tive uma perda progressiva, que foi como se um aviso prévio de que em breve eu não iria mais ouvir aquele som. Eu simplesmente tive uma perda súbita, de uma hora pra outra, que levou embora toda a trilha sonora do mundo. Num dia eu ouvia tudo, no dia seguinte, eu não ouvia mais nada. Eu nunca ouvi nada de compreensível com aparelhos auditivos. Foram quase 23 anos sem ouvir nada. Sendo bem exata: 22 anos e 10 meses sem reconhecer nenhum tipo de som. Salvo quando eu tentava ouvir com aparelho e nada soava diferente do som do liquidificador, eu estive isolada num deserto de silêncio. E mais 3 anos sem entender a voz humana, até fazer o segundo IC.
Por isso que é tão mais fácil um ouvinte ler meus textos e entender a minha tristeza, do que um surdo. Eu escrevo a versão de um ouvinte que perde a audição e sofre horrivelmente com o fato (eu nunca me acostumei com a surdez, nunca achei que isso bastava, nunca me conformei). Mas não escrevo nem perto de como um surdo de nascença ou daqueles que perdem a audição bem cedo escreveriam. E acredito que eles não se sentem como eu. Eles ficam felizes, celebram os sons que ouvem, mas não tem a dor da perda. Não tem mágoas e, por isso, os relatos não teriam essa linha tênue entre a poesia e a dor.
Uma criança que cresce ouvindo com o implante, especialmente aquelas que tem um ótimo resultado e que usam a audição para tudo, ouvir é natural. As conquistas são naturais para ela. Ela pode ter uma relação de mega dependência com o implante coclear, pode morrer de medo de perdê-los (assim como uma criança que usa óculos), pode até chorar se ele precisar ir para o conserto. Mas, de forma alguma, teria essa ferida de quem teve a audição arrancada em algum momento da vida, no máximo, de ter o aparelho arrancado. Portanto, é pouco provável que ela consiga descrever um som ou descrever o prazer de ouvir um som, tal como um ensurdecido faz. Essa reação de resgatar a percepção auditiva está intimamente ligada à perda consciente da audição.
No fim, o importante é considerar que todas as experiências são válidas, são únicas e, ao mesmo tempo, são parecidas. Perder a audição e nascer com surdez, é tudo parte da diversidade da deficiência auditiva. E, felizmente, para muitos e nós, existe a possibilidade de adquirir a percepção auditiva através de uma tecnologia. Seja uma prótese convencional ou implantável, o importante é poder escutar e fazer bom uso dessa possibilidade.
Um brinde à todas as formas de se perceber a poesia sonora da vida!
Beijinhos sonoros,
Lak Lobato
como sempre clara e objetiva…
clarae objetiva no texto…compartilhando.
O Renzo usa AASI desde bebê e ouvia um pouco e então qdo ativou o IC (tínhamos aquela expectativa dos vídeos da primeira vez qdo se ouve),foi muito natural a reação dele,nada igual daqueles vídeos que a criança arregala os olhos e tal rss…
E concordo com vc no que escreveu.