Como aprendi a dirigir sendo surda?

Importante: não trabalho no DETRAN e não garanto que seja necessário todo esse procedimento para um deficiente auditivo tirar a CNH. Falo apenas da condição de uma pessoa surda que tirou a própria. Caso você seja deficiente auditivo ou parente de um, que queira tirar CNH, seria melhor procurar uma auto-escola para se informar direito.

Já contei, por aqui,  como eu dirijo, né? Afinal, uma das 15 frases que eu sempre ouço é: mas surdo pode dirigir? Porque, no fundo, tem muita gente que gostaria que pessoas com deficiência se resumisssem à insignificância delas e não inventassem de fazer nada, especialmente ter uma vida normal e ponto.

Confesso que eu sou medrosa até para andar de bicicleta (Edu que o diga, afinal, ele queria porque queria alugar uma bicicleta em Paris e até conseguiu me convencer, mas eu não andei mais de 1km, justamente porque tinha que andar no meio dos carros e eu não tenho essa coragem toda, mas só porque não tinha espelho retrovisor nelas) e, tirar CNH não foi assim, a primeira coisa que eu fiz, quando me tornei maior de idade.

Quando eu tinha uns 20 e poucos anos, minha irmã foi renovar a CNH dela e, na consulta médica, resolveu perguntar como eu deveria fazer pra tirar a minha. O  médico, uma dessas pessoas gentis e  educadas que compõem o grupinho supimpa do primeiro parágrafo respondeu:  “Ela não tem que tirar carteira de motorista nenhuma. Tô cansado dessa mania de deficiente achar que pode dirigir.”. Claro que eu fiquei sabendo, porque minha irmã sempre me mantém a par de todos os tipos de seres humanos encontráveis no planeta, pra eu não me iludir que a dominação mundial já começou e eu posso descansar…
 Mas, felizmente, como gente preconceituosa não está acima da lei, lógico que eu pude tirar a minha CNH uns tempos depois.  Tudo aconteceu mais ou menos por impulso. Eu sempre enrolava pra ir no Detran e calhou que, um dia, minha mãe foi ver-não-sei-o-que e eu estava junto. Aproveitei a deixa pra pedir informação de como eu deveria proceder. O funcionário de informações do DETRAN, de extrema simpatia, me respondeu: “Como assim? Você ainda não tem carteira? Não sabe que os surdos são os melhores motoristas?”

Disse que eu tinha que subir e fazer o exame médico lá mesmo, porque é o procedimento de praxe. Fomos lá no setor do Exame Médico, pegamos o canhoto pra pagar – já avisaram que era pra entrar em fila preferencial “aqui no DETRAN não importa a deficiência, você vai pagar taxa especial, pode entrar na fila preferencial.” (acho  que vai voar umas muletas na minha direção, mas ordens são ordens).

Volto pra fazer o exame médico, com um médico lindo e fofo (eu tava solteira na época, posso falar isso sem culpa haha) que tava mais interessado em bater papo comigo do que tentar me atrapalhar de tirar a CNH. Perguntou: “Você só não ouve, né? Não tem labirintite nem tontura? (como é o mesmo órgão responsável pela audição e equilíbrio, é comum ter mais de uma patologia concomitante). Você tem o otoneurológico? Não tem? Que pena. Você faz e volta, que eu autorizo na hora você ir pra auto-escola. Não fica triste, é regra do DETRAN, senão te autorizava agora mesmo!”

E lá vou eu, pro hospital, fazer um otoneurológico – claro que não no mesmo dia. O exame em si, dá pra sobreviver, mas é uma tortura. É um tal de encher sua cabeça de eletrodos, pra verificar se você tem tontura de seguir luzes piscantes com os olhos. Girar a cadeira pra ver se você fica tonto. E até enfiar água quente e fria no tímpano, pra ver se ele está em bom estado. Esse último,  eu disse que não deixava nem pagando, então a moça que fazia o exame (putíssima da vida, dado o fato que eu não estava nem um pouco de bom humor e questionava tudo que ela tinha que fazer. Minha vocação pra vaca de presépio estava desativada naquele dia) disse que também era possível usar ar quente/frio, tal como fez. Mas não adiantou nada, eu tive otite do mesmo jeito, já que embora raramente eu tenha inflamação nos  ouvidos, eles são extremamente temperamentais e protestam toda vez que eu faço um exame mais profundo na região.

O exame não acusou nada além de surdez e eu pude voltar no DETRAN e receber a autorização da banca médica – foram quatro médicos pra avaliar e autorizar, especialmente porque eu não usava AASI (aparelhos auditivos) e queria poder dirigir sem eles.

Procurei uma auto-escola perto de casa. O professor era um senhor muito simpático, que teve toda a paciencia do mundo de me dar aula até acabar com meu medo (foram umas 20, com direito a eu atropelá-lo no processo, mas conto isso noutro post).

Fiz o curso teórico – sem grandes adaptações, já que eu fazia faculdade e tirava de letra isso de explicar que era surda, sentar na frente e acompanhar a aula por leitura labial de boa.

No dia da prova teórica, a minha condição me permitia escolher onde queria sentar. Sentei o mais na frente possível, pra não sofrer com o ditado. Eu fiz o ditado normalmente. Uma mulher ditou uma frase e eu escrevi. Mas vi outro aluno surdo, sentado do meu lado receber uma frase por escrito pra copiar. E ele ainda disse pra mim: “nossa, você sabe escrever tão bem assim?”.

A prova prática tem banca especial pra pessoas com deficiência. Entra um médico no carro, antes do exame e pergunta: “Qual a sua deficiência?”

Eu respondi: “Auditiva”

E ele: “Só essa?”

E eu: “Que eu saiba…”

E ele: “Ok, levanta as pernas das calças, pra eu ver se suas pernas são de verdade.”

Levantei, com uma vontade de falar: “No meu planeta, a audição fica na cabeça. No seu, fica nas pernas? Que legal!”

Dai pediu pra mexer os braços e tal. Saiu do carro e disse: “boa sorte!”

Fiz a prova, passei e… finalmente, pude ter a minha CNH e provar pra todo mundo que surdo dirige e muito bem!

Beijinhos

Lak