Pedras no sapato

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Eu tenho fama de ser otimista e bem humorada, sempre procuro o lado bom das coisas. E quando não faço isso, mudo de assunto, mas não significa que eu não sofra ou que eu seja cega para as mazelas da vida. É que eu tento me focar nas coisas boas, porque prestar atenção mas coisas ruins não é de grande valia e não me faz sentir melhor. Evito ser aquela pessoa que só reclama.

Mas, de vez em quando, é bom abordar o outro lado da moeda também, porque senão, alguém lendo meu blog, pode pensar “mas do que essa mulher reclama? A vida dela é ótima!”. Não nego que minha vida seja boa, mas não significa que eu não tenha aqueles 5 minutos de POR FAVOR, PARE O MUNDO QUE EU QUERO DESCER.

A principal coisa que toda pessoa com deficiência reclama é do preconceito. E surdo tem o estigma de ser  retardado também, infelizmente. Ontem mesmo, minha mãe estava contando que um cara surdo que participava do Amazing Race que ela assistia, partiu pra porrada em outra dupla de participantes porque eles riram da voz dele. E  por que incomodou? Porque a risada era típica de “que retardado”. (Oh, eu não vi o programa, minha mãe me contou, eu não dormi essa noite e não me responsabilizo pelas bobagens que eu disser.)
Tem quem ache que a gente exagera, que nos fazemos de vítima e que a gente deveria lidar bem com essas paradas, porque afinal “quem tem preconceito não faz por mal, é falta de informação” (que soa muito bem como um “você que tem a deficiência, você que tem que se virar, o mundo não se adapta a você não”) que chega uma hora que cansa e dá vontade de fazer igual o moleque do Amazing Race e partir pra porrada.

Uma história bizarra que aconteceu comigo ilustra como preconceito pode ser grotesco, boçal e absolutamente dispensável, se as pessoas simplesmente se dessem ao trabalho de pensar fora do próprio umbigo.

Eu estava no primeiro ou segundo ano de faculdade, nem lembro. Só sei que eu estava indo à pé para a faculdade e encontrei a dona de uma livrolocadora (o nome é obvio, mas explicar o obvio é um tesão, era uma loja onde se alugava livros por mês), do qual era sócia e ficava no caminho da faculdade. Fez questão de me cumprimentar:
– Lakshmi! Você sumiu… – Exclamou, com um sorriso, ao me ver – Nunca mais vai pegar livros?
Tentei desconversar, pois agora pegava livros na biblioteca da faculdade e era de graça. Mesmo só podendo ficar com eles uma semana, não era problema, pois leio rápido e levo menos que isso para lê-los.
– Pois é, não tenho tido tempo. Estou estudando muito.
– Está trabalhando, menina? – Ela sabia que fazia faculdade, pois já tinha contado.
– Não, fiz uma bateria de testes para trabalhar numa livraria, mas não me ligaram de volta. Uma pena, eu adoro livros.
– Sei disso –  Sorriu  – Se souber de alguma outra livraria precisando, entro em contato com você, tá?!
– Tá… – Despedimo-nos, pois estava eu meio atrasada para a aula de inglês.
Tempos depois, já no começo de dezembro, quando ia para a faculdade, saber minha nota de uma matéria e buscar um trabalho extra que havia feito. Estava curiosa para saber se valeu a pena varar a madrugada fazendo-o, encontrei de novo a dona da livrolocadora:
– Oi, tudo bom? Estou indo na faculdade, só para pegar notas… – Disse eu, com uma voz de quem estava morrendo de preguiça de fazer isso.
– E aí, tirou um monte de dez? – Respondeu. Ela deduzia que, se eu lia com tanto gosto, deveria ser estudiosa.
– Não, alguns setes mesmo – Sorri, minha média tinha sido essa, já que matei aula demais para beber (estudava à noite, entonces, sacumé).
– E aí, já encontrou o emprego que estava procurando?
– Não, mas desisti de procurar até o ano que vem… Gosto de ficar de férias…
Ela sorriu.
– Que pena… Você gosta tanto de ler, hoje em dia é raro. – Fez uma pausa como se aguardasse uma resposta minha, mas eu não disse nada. – Olha, vou precisar de uma pessoa para trabalhar aqui, só não chamo você para trabalhar aqui, porque você é surda….
Arregalei os olhos, não esperava escutar uma coisa daquelas.
– Teria que falar com as pessoas e entender o que elas querem… – Continuou.
Ainda não acreditando no que estava me dizendo:
– E qual o problema? Eu leio os lábios e sei falar muito bem.
– Ah, mas teria que falar no telefone, né!? – Enfatizando o né – Tem esse problema, você não pode atendê-lo.
Comecei a me perguntar por que cargas d’água ela estava me explicando óbvio.
– E se acontecesse de você ficar sozinha? Quem atenderia o telefone por você?
Não tive tempo de responder, uma amiga dela chegou e pediu-me licença um instante. Fiquei parada, sem conseguir pensar em nada, estava perplexa com o que acabara de ler nos lábios da sujeita. De repente, disse para a amiga, com o rosto voltado para mim:
– Fulana, quero lhe apresentar uma das minhas clientes. Ela é um doce de pessoa .
“Isso, bate e assopra, que eu estou precisando de sandices desse tipo.” Pensei
– Adora livros. Só não contrato para trabalhar comigo, porque é surda, acredita?
Não agüentei. Disse que estava atrasada, pois iria encontrar alguém e que precisava ir. Despedi-me das duas e fui para a faculdade, com vontade de matar algumas pessoas que podiam evitar esse tipo de situação simplesmente se dando ao trabalho de pensar antes de falar. Afinal, não é porque alguém tem uma deficiência que a pessoa é desprovida de auto estima e, menos ainda, deve ter obrigação de ouvir qualquer imbecilidade que digam a respeito dela.

Beijinhos

Lak

12 Resultados

  1. Maíra disse:

    Lak,
    acredito que seja por falta de informação mesmo. Daí nós que devemos mostrar o outro lado da moeda. Mas às vezes cansa, né? Reforçar a deficiência como incapacidade de algo é dose. Claro que não vamos surprir todas as necessidades, mas compensaremos muito mais em outras.
    Eu consigo falar +- no tel (mas dependende do tel/cel). O telefone lá de casa eu não consigo mais falar, misteriosamente ficou baixo. Até ja comprei o amplificador para telefone mas ainda não pus. O meu celular eu só consigo falar se eu tiver num ambiente BEM silencioso e com pessoas que eu conheço. Aqui no trabalho, qd algum pesquisador me liga, eu peço pra dizerem: manda email ou venha na minha sala. Detesto ficar implorando no telefone pra entender o q o outro fala, tenho que pressionar muito o telefone no ouvido pra ver se capto algo.
    Não dá, é complicado. Mas deixar a auto-estima cair, não dá tb.

  2. Nossa Lakinha, eu já ouvi dessa, mas pior ainda que no meu caso o trabalho nem precisava de atender telefone. Me deu um odio, acabou que contrataram uma outra que nâo era surda e roubou tanto dinheiro deles que quebraram e fecharam a loja. Juro que numa hora dessas dá vontade de descer do salto e falar BORRACHA ( que é pra não dizer outra coisa) pra pessoa, só nunca fiz porque minha educação nunca permitiu. O problema com essas pessoa é o seguinte, o problema é obvio e nós mais do que ninguém sabemos dele, só que eles acham que a gente não se frustra só porque acostumou. Dá vontade de atacar de Steve Seagal e Chuck Norris e sair matando rs.

  3. Bia disse:

    Affff… que povo mais besta.
    Do jeito que sou estourada, tinha dito um monte pra essa mulher..kkkkkk

    Beijo pra tu!

  4. Rogério disse:

    Lak, já percebi que quando sou eu o agredido tenho mais tendência a relevar, mas quando atingem minha cria eu viro bicho. Já tive reações das quais hoje me arrependo ou, no mínimo, avalio que carreguei demais nas cores, por isso imagino que sua postura tenha sido a mais adequada, porque prevaleceu a altivez. Situações como a relatada por você deixam a certeza cristalina de que o problema não somos nós, mas a cabeça limitada dos outros. Chora não, minha fofa. Você não escuta, tem gente que não ouve. Beijinho.

  5. Juca disse:

    pior que a pessoa levar os estereótipos de um “problema” é o “problema” eclipsar de vez a pessoa, né 😐 … acho que não tem nada errado destacar tb “coisas ruins” que acontecem com a gente pq se teve superação é pq teve dificuldade… só agora vc apontando melhor é que vai se concretizando pra mim como o ato da fala pode se transformar num bloqueio pra um surdo… ainda não tinha pensado nisso mas a dificuldade com a oralização pode vir tb “de dentro”, da insegurança na pessoa com a aceitação dos outros, né 😐

    beijos, Lak… gostei de ler como sempre!!! 🙂

  6. Alex Martins disse:

    tem gente que foge da responsabilidade de ter que lidar com os limites do outro, foi o que a dona da livrolocadora fez

  7. Rogério disse:

    Complementando: meu post de ontem fala de John Lennon, e tem um trecho de um texto dele que se encaixa aqui: “Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto. Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto.” O cara sabia das coisas, né?

  8. Mary disse:

    Nossa Lak!!
    Tb já passei por várias destas e a gente tem que se segurar pra não sair dando uma de Chuck por aí… (como diz Diefani)
    Comigo aconteceu parecido, por acaso fiquei sozinha numa farmacinha que trabalhava, e chegou uma mulher esquentada da vida, e pediu-me um medicamento. Não entendi e pedi, por gentileza que ela repetisse. Ela ficou braba e eu expliquei minha situação e que ela escrevesse num papel para que eu pudesse ajudá-la… Sabe o que ela disse “NÃO ACREDITO, VOU IR EM UMA OUTRA FARMÁCIA QUE EU SEJA MELHOR ATENDIDA!!!” e saiu porta afora 😮
    Bom, nem preciso dizer que perdi o chão!!!
    Tive que me segurar pra não chorar sozinha ali na farmácia!!!!
    Como existem pessoas pouco informadas, de pouco espírito né!?
    Mas a gente não pode deixar de se abater por coisas assim né? É fogo, mas….
    Pensemos onde nós já chegamos né!? A gente consegue muito mais… só não conviver com certas pessoas!
    Hehehehe…
    Beijinhos para todos!!

  9. Leila disse:

    Oi Lakinha!!! Ando sumida, cheia de coisas pra fazer… faz tempos que não entro na Net, né?

    Continuo adorando seus posts.

    Ah, acredite, na oitava série eu joguei uma cadeira na cabeça de uma fulana que todos os dias ficava rindo da minha cara. Depois ela ficou assim: 😯
    hihihi…..

  10. Nossa, depois dessa eu rodava a baiana com essa mulher. Nunca sofri preconceito sobre a tal de “inferioridade” de capacidade porque sempre fui muito respeitada nas escolas onde estudei desde o maternal até a faculdade por causa das minhas notas (média de 90) e sempre era eu quem ensinava os meus colegas ouvintes sobre as matérias, dançava melhor, desenhava melhor e sabia de mais coisas também.

    Mas ocorreu um episódio na faculdade, chegou uma mulher perdida querendo saber onde chegava num tal lugar e me perguntou. Claro que não entendi, falei que era surda e pedi pra repetir. A resposta que ela me deu era: “desculpe” e foi embora sem me dar uma oportunidade de ajudar. Apareceu outra pessoa que demonstrou a mesma atitude do “desculpe”. Fiquei brava com o fato. Até que na terceira pessoa, no mesmo dia, eu AGARREI o braço de uma velhinha antes dela ir embora para me deixar ajudá-la a encontrar o lugar. Me senti realizada depois de ter feito isso!

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