A deliciosa e assustadora arte de falar para crianças

por Mariana Candal

A gente não planeja nada na vida mesmo, e assim como a surdez não teve aviso prévio em nossas vidas, esta semana estava com tudo planejadinho para o texto aqui da coluna, mas um evento na escola tirou tudo dos eixos e eu decidi mudar totalmente o rumo dessa prosa com vocês.

Uma semana antes fui convidada meio de supetão para participar como palestrante da Semana Vocacional da escola dos meus filhos. Questionei bastante sobre o que exatamente a Coordenadora queria, pois a minha vida profissional não é exatamente um exemplo. Eu parei de trabalhar quando tivemos o diagnóstico da surdez da Joana, uma decisão muito, muito difícil, e que até hoje, não consegui reverter completamente, pelo menos não nos moldes tradicionais de trabalho que a sociedade espera da gente. Mas como falo pelos cotovelos sobre surdez e sobre a importância de ajudar outras famílias que lidam com a deficiência auditiva ou até mesmo com outras deficiências, ela achou que seria um bom tema para as crianças de 1º e 2º anos do Ensino Fundamental.

Ah, eu queria poder ter filmado, fotografado, registrado cada momento, mas há uma série de restrições de uso de imagem de menores e claro que não pude fazer nenhum registro. Foi lindo, uma experiência daquelas que nos sacodem por dentro. Tivemos dois momentos, um em cada turno: de manhã com 6 turmas e cerca de 130 crianças, e de tarde com mais 4 turmas e cerca de 90 crianças! E é claro que eu estava apavorada, achando que aquele exército de crianças entre 6 e 8 anos iriam me comer viva. Bom, se estou aqui contando essa história para vocês é porque tudo acabou bem, apesar de ter sido socorrida por algumas professoras nos momentos de euforia extremos.   

Durante 50 minutos falamos sobre o que faz um publicitário, e expliquei para eles que pode ser muito mais do que vender produtos de consumo, que também podemos “vender” ideias, que também podemos usar as ferramentas e estratégias de comunicação para transmitir conhecimento, quebrar preconceitos, e transformar realidades a nossa volta, e que é isso que eu venho fazendo depois de descobrir a surdez da Joana. Claro, falei sobre a Lalá e fiz a leitura do livro “E Não É Que Eu Ouvi?”, que é um material que a Joana se identifica profundamente, a ponto de achar que é a própria Lalá.

Foi lindo ver os dois grupos batendo palmas espontaneamente. Não, não foram as professoras que puxaram as palmas, foram as crianças, acompanhadas de gritinhos e alguns saltos pela sala. Só não chorei ali porque a minha surpresa com as reações foi maior. Essas crianças, em sua imensa maioria sem nenhum tipo de deficiência, reagiram eufóricos com a história da nossa Lalá! Além da Joana que estava toda prosa mostrando seus implantes, teve criança com AASI levantando para falar dos aparelhos também para os colegas, e todos querendo saber a diferença dos dois tipos de aparelhos. Teve criança autista que conseguiu se manifestar três vezes seguidas para fazer perguntas. Teve uma menina sem nenhuma deficiência auditiva me perguntando onde poderia comprar uma boneca da Lalá, e teve um menino que eu achei até que ia colocar a Lalá debaixo do braço e levar com ele de tão encantado que ele estava com os aparelhos de implante numa boneca. Teve uma menina de óculos que me deu o abraço mais apertado do mundo, como quem diz “você me entendeu”, e um outro menino também de óculos que quis me contar como ele também precisa tirar os óculos para dormir e pra tomar banho. E tiveram muitos e muitos abraços de “adorei, Tia!”.

A mensagem que tentei deixar para eles, e acho que consegui um pouquinho é que nenhuma criança com alguma deficiência é diferente pela deficiência em si. A criança com deficiência pode (e deve!) fazer tudo, pode experimentar tudo, e a nós família, cabe apenas estimular, ir fazendo as adaptações necessárias, e aproveitar cada conquista. O que eu aprendi é que a gente precisa mesmo falar mais e mais sobre isso, para crianças e para adultos (sim, professoras e auxiliares também estavam emocionadas). Aquelas, e todas as crianças precisavam ouvir sobre diferenças e limitações. Eu tenho certeza que os abraços apertados que eu recebi no final, os recados das crianças enviados por aplicativo de mensagens pelas mães, e até as abordagens das crianças na saída da aula são uma maneira delas demonstrarem o quanto se sentiram entendidas em suas diferenças, independentemente de haver ou não uma deficiência em suas vidas.

Terminando a semana com uma sensação maravilhosa de dever cumprido, de ter conseguido aprender que há mais crianças se sentindo “diferentes” do que eu imaginava, de ter conseguido acolher com um abraço algumas poucas crianças das muitas que precisam desse colo, com esperança de ter tocado também adultos…
E o mais importante, terminando a semana com o alívio de ter sobrevivido a mais de 200 crianças! Consegui!

5 Resultados

  1. Mais do que um texto delicioso de ler, mais do que ficar emocionada, seu relato reafirma minha convicção de que a Educação Inclusiva é “o” caminho para a construção de um mundo melhor, do mundo no qual quero viver e, mais do que isso, deixar minha pegada para as próximas gerações.

    Lak Lobato, você traz tantas contribuições! E abre espaços acolhedores, como esse! Mariana Candal, por favor, sobreviva sempre (rs), para nos encantar!

  2. Bárbara Ferraz disse:

    Eu sabia que ia ser um sucesso, eu falei que você tirava de letra.
    São só crianças. Parabéns pela coragem, parabéns por apresentar mais uma vez a surdez a um público especial. 🙂

  3. Mônica campello disse:

    Adorei de novo ! E tenho a impressão de que vou amar sempre ! Experiência maravilhosa ! Parabéns, Mariana ! Eu e Raul quando fizemos a leitura do livro da Lalá também foi uma experiência muito rica e gratificante. Beijinhos nas duas !

  4. Emília disse:

    Ontem, uma mãe de uma bebê que não tem deficiência, olhou para mim e disse que minha filha, deficiente auditiva, vai sofrer preconceito. Foi tão dolorido ouvir aquilo, embora eu ache que qualquer um, independente de deficiência, pode passar por isso na vida. Voltei reflexiva, pensando que se os pais, a escola, discute as diferenças, possa ser que as coisas mudem. Me deparar com esse texto hoje, é sentir que é possível um mundo melhor, com pessoas mais conscientes das diferenças. Obrigada Mariana por compartilhar essa história.

    • Avatar photo Lak Lobato disse:

      O preconceito mais difícil de lidar, é aquele que vem dos pais. Disso, sua filha está livre. Sendo assim, ela vai ter muito mais oportunidade de alçar todos os vôos que quiser. No máximo, vai precisar ser um pouco criativa! Beijinhos sonoros

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