Educação e Implante Coclear em tempos de pandemia

Quem conhece um pouquinho da história da Joana, agora já com 9 anos, sabe que ela com apenas 10 dias de vida teve o diagnóstico de surdez bilateral profunda. Os primeiros 4 anos de vida foram uma corrida maluca pela reabilitação auditiva e oralização, envolvendo muitos exames, testes, a cirurgia de implante coclear, a ativação, mapeamentos, consultas com otorrino, muita fonoterapia e infinitas horas investidas na rotina de estimulação dela. E hoje a gente pode dizer que deu certo, ela ouve, discrimina, entende e fala muitíssimo bem. 

Mas vamos falar de escola! Com tudo dando tão certo na reabilitação auditiva, a vida escolar foi seguindo sem sobressaltos, e consequentemente, sem nenhum grande sofrimento. Na educação infantil ela sempre acompanhou bem o que se esperava para cada etapa, e iniciou a alfabetização muito bem. Quando ela estava com 5 anos de idade, nos mudamos para os Estados Unidos. Com o coração na mão deixei ela na escola americana, sem saber uma palavra em inglês. Ela não se intimidou, absorveu a língua inglesa em poucos meses e tudo fluiu. Aos 7 anos retornamos para o Brasil, e ela retornou no 1o ano do Fundamental porque a alfabetização dela tinha sido toda em inglês. Estudamos bastante com ela, colocamos 2 meses de aulas particulares intensas, e deu certo! Tudo ia bem nesse seguimento do Fundamental I, ela hoje já no 3o ano, até que veio a pandemia! 

A reflexão que eu quero trazer é o risco que existe na educação das nossas crianças surdas até quando está “tudo bem” e a gente vai levando o dia a dia na nossa zona de conforto. A Joana até pelos excelentes resultados nunca precisou de nenhuma ajuda extra na escola. Eu nunca solicitei o apoio de mediador, nem intérprete de Libras porque a oralização se concretizou, nem provas adaptadas, e nem o uso de tecnologias de apoio como sistema FM. Porém, todos esses recursos são direitos nossos! Devemos estar em constante avaliação para que um ou outro ou vários desses recursos, ou até todos eles sejam utilizados para que nossos filhos surdos tenham as dificuldades impostas pela deficiência minimizadas. Isso não é favor, não é facilitar a vida de ninguém. É equalizar as condições de aprendizagem com justiça. Apesar de eu, a fonoaudióloga e as professoras, sempre concordarmos que a Joana não precisava desses recursos extras, eu sempre cobrei muito um olhar diferenciado, de acompanhamento mesmo, e uma avaliação constante. No contato diário com a professora colocava demandas pequenas como pedir para ela sentar mais na frente na sala, perguntava sempre sobre o desenvolvimento dela e se ela estava acompanhando bem, reclamava de um vídeo com áudio ruim e sem legenda que foi passado pra casa, demandas menores e que eram sempre cuidadas e atendidas.

Falando isso tudo, vocês devem estar se perguntando: mas então por que essa mãe está reclamando? Porque essa danada dessa pandemia escancara tudo! Ela chegou, com ela o isolamento, e com o isolamento as aulas online…
E com as aulas online, eu fui catapultada da minha zona de conforto. Eu, que estava tranquila com o aprendizado da Joana, sentei com ela para o início das aulas online, acreditando que a minha ajuda seria necessária apenas para um apoio técnico no uso mais intenso do computador, e me deparei com meu maior pesadelo:
25 crianças numa sala virtual falando todas ao mesmo tempo, sem nenhuma preparação para o uso adequado daquela ferramenta.
Faltava orientação, faltava (e ainda falta de vez em quando) bom senso, e claro na ânsia de serem todos ouvidos pela professora ninguém pensava na possibilidade da Joana ter dificuldade, até porque nem eu mesma fui capaz de prever aquilo, e diante de mim ao invés daquela aluna bem resolvida estava uma menina acuada, paralisada e totalmente confusa. Essa foi a primeira crise, afetou muito o emocional dela, e o meu também, afetou a motivação, interferiu na concentração, e me obrigou a reorganizar a minha rotina para poder estar sempre disponível no horário de aula para ajudá-la. Depois de solicitar a ajuda da professora e a colaboração dos pais por alguns dias seguidos entramos numa curva de melhora, mas que tem recaídas esporádicas, essa semana mesmo tive que reforçar isso com a professora. 

Mas a pandemia não iria ser tão boazinha assim, e escancarou a segunda crise. Aula online de música! Que vontade de chorar que dá! Joana também sempre foi ótima aluna de música, aqui e nos Estados Unidos aprendeu flauta com naturalidade, e nós nunca ajudamos até por total ignorância musical. Falo sempre pra ela que no meu tempo a gente tocava chocalho e triângulo e olhe lá! Depois de quase dois meses de aula ela veio me pedir socorro para a aula de música, sentei com ela e me desesperei porque sabia menos ainda do que ela. O irmão tentou ajudar, a mãe de uma amiga também, mas a professora titular me orientou a falar com o professor de música. Entrei em contato, expliquei toda a situação e citei a dificuldade dela com a qualidade sonora do computador,  falei de surdez, implante e tal…
E qual não foi a minha surpresa quando o professor de música me responde que não tinha a menor ideia de que a Joana era surda. Parece piada, mas não é. O professor. De música. Não sabe que tem uma aluna SURDA na sala! 

Aí muita gente deve estar se perguntando como isso acontece. Antes de escrever esse texto eu conversei com outras mães da escola com filhos com outras deficiências ou transtornos de aprendizagem, conversei com amigas professoras de outras escolas, e descobri o seguinte: a escola (em sua maioria, acredito) só se preocupa e age de forma pró-ativa quando a criança tem um laudo médico apresentado na escola. E eu, como tudo sempre ia muito bem com a Joana, como todas as minhas pequenas demandas eram atendidas, e como ela tem um implante em cada orelha e bem visíveis e enfeitados, achei que isso seria suficiente para a escola entender que estava lidando com uma criança SURDA, e achei que surdez seria considerada por senso comum uma deficiência. Bom, a pandemia fez esse favor de escancarar também que se eu não documentar a deficiência, a escola não terá o olhar que deve ter, não se preocupará com o desenvolvimento dela e como ela acompanha as aulas (eu que me vire com isso), não me ligará nas aulas online para saber como está sendo pra ela (como fizeram com outros alunos laudados), não irá ter nem a preocupação da coordenação pedagógica de avisar aos professores novos que a aluna tem uma deficiência que precisa ser observada. 

O laudo da Joana será apresentado semana que vem sem falta. É preciso deixar claro que nós, eu e o pai, não queremos que por causa do laudo ela seja tratada de uma forma diferente, e nem que sejam adaptadas situações ou conteúdos sem necessidade. Quem me conhece também sabe que eu sempre fui a favor de desafiar as nossas crianças, e adaptar só quando necessário, mas JAMAIS podemos esquecer que ali há uma deficiência, nem com o melhor dos resultados podemos cair nessa armadilha. A deficiência está ali, sempre estará. 

O que eu quero com esse texto? Desabafar, claro, mas também alertar que se os pais querem um olhar atento, colaborativo, responsável e profissional da instituição, que é permanente, e não apenas dos profissionais que lá trabalham, porque esses são transitórios, laudem seus filhos nas escolas. Independente da qualidade dos resultados alcançados na reabilitação, independente da escola ser ótima e atender o que você solicita, entreguem o laudo na instituição de ensino, exijam reuniões periódicas para o acompanhar o desenvolvimento e para saber mais o que acontece na escola, estejam lado a lado com seus filhos nessa jornada. Infelizmente não podemos abrir mão da burocracia, sob risco de sermos esquecidos na tal invisibilidade da surdez. 

2 Resultados

  1. Lak, parabéns pelo seu olhar sempre atento!
    Mariana Candal, que excelente alerta! Seus textos são muito esclarecedores.
    Vou partilhar.
    Um grande abraço, com muita admiração por ambas

  2. Bárbara Ferraz disse:

    O texto saiu ne minha amiga, saiu com uma leveza e uma firmeza que você sabe equilibrar bem. Espero que tenha dado tudo certo e que apesar do susto e da ” falta de chão” iniciais ( oooo sentimento que nunca acaba) as coisas tenham se resolvido da melhor forma.
    Espero que essa pandemia passe e tudo volte aos eixos. Mais um aprendizado nessa vida de mãe de surdo, mais um dos muitos que ainda virão. Fica bem e qualquer coisa chama.

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