Maternidade & Capacitismo

Precisamos falar sobre o capacitismo e sobre como isso pode atingir a nós e nossos filhos, com ou sem deficiência. No meu caso, eu tenho dois filhos e só a Joana é surda profunda bilateral. Para quem ainda não tem familiaridade com esse termo:

Capacitismo é toda expressão de preconceito que acontece associado à uma deficiência.

O primeiro momento em que o capacitismo se impõe em nossas vidas é no processo de diagnóstico. É ali que nos vem à mente todos os possíveis nãos relacionados à deficiência em questão. A gente esquece que está diante de uma criança, e que só isso já significa uma infinidade de possibilidades, de coisas boas, outras maravilhosas e de coisas ruins também. Isso se chama vida! Mas, a gente está lá só contabilizando os “nãos”, numa lista infinita. E o capacitismo joga tão duro com a gente que, nesse primeiro momento, ele já pode nos deprimir, nos fazer entrar em negação, e nos paralisar também em relação ao que fazer, paralisar tratamentos e possibilidades de intervenção. Mas, mãe é tinhosa e vence esse primeiro confronto, conseguimos construir novos olhares sobre nossos filhos, conseguimos seguir adiante. 

Porém, o capacitismo é uma coisa que não cede fácil! Volta a nos atormentar constantemente e enche a nossa cabeça de caraminholas sobre o que os outros vão pensar e como podemos proteger nossos filhos dessas situações.

É aí que surge a armadilha de escondermos a deficiência, não caiam nessa!

Eventualmente a gente escorrega mesmo. Seja tentando disfarçar o que for que apareça na deficiência do nosso filho (no caso da surdez é muito comum as tentativas de disfarçar os aparelhos auditivos e implantes cocleares); seja sofrendo pelo olhar do outro, mesmo quando mostramos os aparelhos enfrentando o nosso próprio preconceito e ressignificando uma montanha de sentimentos; seja deixando de levar nossos filhos em momentos de convivência social.

Sim, os olhares e as opiniões dos outros machucam demais.

Lembro que antes da cirurgia do implante da Joana, estava em família e mostrei imagens de crianças implantadas e dos aparelhos que a Joana usaria e uma pessoa, talvez achando que daria uma sugestão útil, perguntou:

“Não existe nada menos feio para colocar na cabeça da criança, não?!”

Ali, eu me dei conta que todo preconceito e julgamento não estavam apenas em mim, estão no mundo inteiro: na família, na escola, nos parquinhos, nas atividades extras curriculares.

A gente vai aprendendo a lidar com isso, aproveitando cada situação de um olhar, de uma fala descuidada ou rude para fazer discurso mesmo e deixar as pessoas de boca aberta pelo milagre que a tecnologia pode fazer e como uma deficiência não é o fim do mundo. Todas essas situações doem (em mim doeram muito), mesmo eu tendo uma postura firme na minha resposta, mesmo quando eu ensino algo para essas pessoas, mesmo quando eu as faço pensar e também as deixo desconfortáveis pela expressão dos seu próprio preconceito. A dor continua lá, a gente lida com ela, transforma, mas ela está lá.  

O tempo passa, a gente aprende muito sobre deficiência em 8 anos, não apenas sobre a deficiência do nosso filho…
A gente passa a fazer um esforço constante de empatia, compreensão e troca com as outras mães, nos tornamos pessoas diferentes porque dividimos experiências.
Mas, aquele danado do capacitismo continua dentro da gente, por mais que tentemos mudar, parece que ele só adormece. Eu só não esperava ter uma lição de anti-capacitismo com meu filho mais velho. Claro, ele tem uma experiência singular com a deficiência, ele vive a surdez dentro de casa. Tem uma mãe que pensa, fala e respira este assunto vinte e quatro horas por dia. Ainda assim, ele só tem 13 anos. Ano passado, ele teve uma colega de sala com Síndrome de Down. No começo do ano, ele nem sabia o que exatamente ela tinha de diferente, me perguntou, me mostrou a colega para que eu pudesse explicar, não sossegou enquanto não entendeu. E eu já achei lindo essa curiosidade movê-lo, não apenas pela curiosidade em si, mas porque ele queria entendê-la de verdade.
Ao longo do ano eles fizeram dois trabalhos em grupo. E eu dei um empurrãozinho para ele e os amigos pensarem em como incluí-la no passo a passo do trabalho e também nas apresentações. Afinal, não poderiam fazer tudo por ela e sim com ela.
Até aí, eu achava que eu estava ensinando algo para o meu filho, mas então veio uma conversa de final de ano, sobre as notas das últimas provas…
Ele que reclamou o ano inteiro que o professor de geografia era um carrasco, mesmo tendo boas notas.
Reafirmou a reclamação na última rodada de provas, praguejando porque ele não conseguiu gabaritar e era essa a meta dele. Aí, ele fez uma pausa e lembrou de uma coisa importante: a amiga com Síndrome de Down gabaritou em Geografia! E eu respondi totalmente por reflexo: “Ah, mas a prova dela é adaptada!”. E ele muito calmamente me deu a seguinte resposta:

“Pois é mãe, mas ainda assim, ela gabaritou e a gente não pode tirar esse mérito dela.”

Nesse momento, eu congelei de constrangimento pelo que tinha acabado de dizer. Pedi desculpas ao meu filho no mesmo instante. E a mim mesma, depois nas minhas reflexões.

E foi assim que eu me dei conta que mesmo sendo mãe de uma criança com deficiência, mesmo lutando todos os dias para divulgar informações sobre a surdez para tentar de pouquinho em pouquinho transformar o mundo ao nosso redor num lugar melhor para as pessoas com deficiência, o capacitismo está com as raízes fincadas em nós e nunca conseguiremos exterminá-lo completamente. E sabe por quê?

Porque fomos ensinados assim enquanto nossa personalidade era formada.
A gente até consegue adormecê-lo. Mas, num momento de descuido, esse capacitismo enraizado vem à tona.

Mas, essa escorregada épica também é um exemplo maravilhoso de como é possível arrancar esse capacitismo da sociedade, porque meu filho mostrou que é possível que essas novas gerações tenham suas personalidades formadas em bases completamente diferente das que nós que já somos adultos fomos formados.
Então fica aqui o convite para reflexão e para ação: não vamos apenas reclamar das situações ruins que acontecem pelo capacitismo das pessoas em relação aos nossos filhos, vamos além disso, vamos ajudar a construir novas gerações com outras bases e com outros olhares para a deficiência e para o outro, com mais tolerância e mais acolhimento para TUDO que não seja padrão.

Só dá pra fazer isso falando muito sobre deficiência e sobre capacitismo.

Vamos cuidar também do nosso próprio capacitismo, para deixar ele bem adormecidinho, porque ele pode se manifestar até em forma de super proteção com nossos próprios filhos, mas aí esse papo de super proteção versus atirar aos leões é papo para uma outra coluna.

1 Resultado

  1. Ale Vidaurre disse:

    Que texto incrível! Que lição que o Miguel te deu e vc nos presenteou! Isso aí! E um trabalho de formiguinha…. por mais atitudes assim nesse mundo! Parabéns pra ele, pra vc e Bruno! Orgulho que chama né?! Bjs

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