O mito dos 10 milhões de surdos usuários de Libras

Um obstáculo permanente na divulgação da diversidade e inclusão é o constante esbarrar com a desinformação “desavisada, mas talvez intencional” de alguns assuntos.

Uma questão que surge na minha área é o uso de dados do IBGE (Censo de 2010) sobre deficiência auditiva como argumento para enfatizar a importância da Libras. É comum encontrar pessoas citando a frase: “10 milhões de surdos precisam de intérpretes de Libras”. Embora seja indiscutível a necessidade de acessibilidade na língua de sinais para boa parte dos surdos, esse número “10 milhões” não é uma representação precisa da realidade das pessoas com deficiência auditiva no Brasil e sua forma principal de comunicação. Na verdade, o número é baseado na projeção da amostragem de pessoas com algum grau de deficiência auditiva no Censo pelo IBGE em 2010. Essa projeção é obtida mediante uma única pergunta, o que não reflete adequadamente a complexidade da situação:

6.15 – Tem dificuldade permanente de ouvir?

(se utiliza aparelho auditivo, faça sua avaliação quando o estiver utilizando)

  1. Sim, não consegue de modo algum
  2. Sim, grande dificuldade
  3. Sim, alguma dificuldade
  4. Não, nenhuma dificuldade

Como pode-se notar, com base nesta pergunta, não é possível entender qual a forma de comunicação utilizada pelo respondente que diz ter qualquer “dificuldade de ouvir”. Também não é possível entender o histórico de perda auditiva da pessoa. A pergunta apenas nos mostra se a pessoa tem dificuldade de ouvir mesmo com o uso de alguma tecnologia e qual o grau aproximado dessa dificuldade.

Portanto, não é possível declarar que uma pessoa que tenha selecionado as respostas 1, 2 ou 3 utiliza português ou língua de sinais no seu dia a dia, ou se ela foi alfabetizada em português ou língua de sinais.

Chegar à conclusão que “10 milhões de surdos precisam de intérpretes de Libras” é apenas uma lógica dedutiva estereotipada de que toda e qualquer pessoa com deficiência auditiva seria usuária de Libras ou teria esta como sua principal forma de comunicação.

O resultado dessa dedução baseada em estereótipos é utilizar esse argumento para forçar a ideia de que todas as pessoas com deficiência auditiva seriam falantes da Libras como primeira língua e que basta oferecer interpretação em Libras para tornar algo acessível para todas essas pessoas.

Qual o perfil do usuário de Libras?

Um estudo feito em cima dos dados do IBGE, realizado pelo Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda em 2019, descobriu que metade das pessoas com deficiência auditiva são pessoas que perderam a audição (não nasceram surdas) e boa parte delas, após os 40 anos. Pessoas que perderam a audição na idade adulta, ouviram nos primeiros anos de vida e como qualquer ouvinte, adquiriram a linguagem oral e são falantes da língua portuguesa, mesmo as que aprendam Libras por opção, mais tarde.  

Ainda nessa mesma pesquisa, há dados que mostram que a perda auditiva profunda, que dificultaria o aprendizado da língua portuguesa e da linguagem oral, acomete apenas uma pequena parcela das pessoas com deficiência auditiva. A maioria das pessoas com deficiência auditiva têm perdas leves, moderadas e severas e se beneficiam com o uso das tecnologias auditivas e, por consequência, é bastante provável que sejam em sua maioria falantes de português como primeiro idioma.

Surdez não é sinônimo de Libras

Em 2019, o IBGE realizou a Pesquisa Nacional de Saúde, que pela primeira vez perguntou especificamente sobre o uso de língua de sinais. O resultado mostrou que, entre a população com mais de 5 anos com deficiência auditiva (aqueles que têm grande dificuldade de ouvir ou não conseguir ouvir de modo algum), apenas 22,4% sabem usar a Língua Brasileira de Sinais.

Por mais que todas as pessoas surdas se dispusessem a aprender Libras e esse também fosse um aprendizado de todos os ouvintes, a interpretação em Libras não substituiria a necessidade de legenda, porque aprender Libras não significa a rejeição ou preferência à Língua Portuguesa. Ainda haveria milhares ou até milhões de pessoas preferindo acessibilidade e inclusão na sua língua materna: o português.

Concordo que é preciso buscar maneiras de defender a Libras e falar de sua importância para uma parcela da população que precisa usá-la, porém essa defesa deve ser feita com o uso de dados corretos e sem posicioná-la como a única forma de inclusão e acessibilidade para pessoas com deficiência auditiva.

Acessibilidade não apenas para surdos

Quando se deturpa dados para dando a ideia de que a Libras é a principal forma de acessibilidade para a população surda e com deficiência auditiva, ofusca-se a importância de a legenda estar tão acessível e disponível quando a Libras, deixando a maior parte da população com deficiência sem nenhuma acessibilidade.

A legenda, ao contrário da Libras, atende muito mais do que surdos e pessoas com deficiência auditiva: ela também é útil para pessoas autistas, com baixa visão, estrangeiros que estão aprendendo português, fortalece a alfabetização de nativos do português pelo contato com a língua escrita e permite acessibilidade também para ouvintes que não possam ter acesso ao áudio naquele momento.

Embora a Libras seja uma importante ferramenta de acessibilidade para parte da população surda, é fundamental lembrar que existem outras formas de apoio que podem ser igualmente importantes para garantir a inclusão e a acessibilidade para todas as pessoas com deficiência auditiva. As legendas, por exemplo, são uma opção acessível e amplamente utilizada, que podem ser facilmente implementadas em diversas situações cotidianas, como em eventos, palestras, filmes, programas de televisão e até mesmo em plataformas digitais.

Além disso, é importante ressaltar que a preferência pela legenda não implica em desvalorização ou desrespeito à Libras. Ambas as formas de apoio são igualmente importantes e necessárias para garantir a inclusão e a acessibilidade de todas as pessoas com deficiência auditiva. Por isso, é fundamental que as empresas e instituições considerem a diversidade dentro da surdez e ofereçam opções de acessibilidade que atendam às necessidades específicas de cada indivíduo.

Beijinhos sonoros,

Lak Lobato

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