Reaprender a viver com o implante coclear

Quando comecei o blog, há mais de 9 anos, eu fazia muitos textos sobre meus sentimentos e percepções sobre a surdez e o implante coclear. Com o passar do tempo, foi virando um site de referência sobre os assuntos e acabei deixando de lado a minha experiência emocional.

Mas nesse texto, volto as minhas raízes, depois de uma conversa que me deixou o final de semana pensativa.

Eu estava num evento de tecnologia e uma pessoa veio conversar comigo para saber como era voltar a ouvir através do implante coclear. E eu respondi de uma forma que surpreendeu até a mim.

Aprender a ouvir é relativamente fácil. O cérebro faz um trabalho natural de ir coletando informações e formando uma memória auditiva. E você pode fazer reabilitação auditiva para que um profissional especializado trabalhe junto com você para acelerar o processo. E você pode usar aplicativos de aprendizado auditivo (eu indico o Cochleando, porque foi o único que eu testei), ouvir música lendo a letra, pode assistir televisão com áudio e legendas em português, pode pedir para um amigo te ajudar aprender a falar no telefone, etc. etc. etc. Há um milhão de dicas que podem te ajudar nesse processo de aprender ou reaprender a ouvir através do implante coclear.

O que ninguém te fala é que, se você tiver ficado muito tempo sem ouvir como eu, você vai ter que reaprender todo o processo social também. Você vai ter que aprender a lidar com situações do dia a dia, mudando seu comportamento. Você vai ter que aprender que é possível conversar numa mesa de bar com mais de duas pessoas sem ficar de fora. Você vai ter que aprender que quando o telefone tocar, você é uma das pessoas que pode atender. Você vai ter que aprender a pegar o telefone e ligar para a pizzaria, se quiser pedir uma pizza. Você vai ter que aprender que não precisa sentar na primeira fileira se quiser assistir uma palestra. Você vai ter que aprender a não ter medo de participar de uma reunião, nem de ser enviado para representar sua equipe num evento. Aprender a fazer anotações enquanto as pessoas falam. Coisas que, geralmente, quem faz leitura labial, quem não ouve bem, tem dificuldade de fazer.

E que essas mudanças de padrão de comportamento não são nada fáceis. E nem sempre vem com a mesma naturalidade de aprender a ouvir. Porque elas requerem um processo de desconstrução de comportamento aprendido por décadas e reconstrução – nem sempre tão natural – de um novo padrão de comportamento.

Anos atrás, depois de já estar ouvindo com o IC, eu fui duramente criticada por uma gestora porque eu não tinha o hábito de anotar quando estava numa reunião. Só que ainda era difícil perceber que eu não ficava boiando na reunião, eu realmente conseguia entender. Anotar, então, era impossível. Eu nunca anotei nada na escola, porque eu precisava ler lábios. Eu prestava atenção na aula e depois pegava as anotações de alguém. Imagina se eu saberia tomar nota por conta própria. Só hoje, quase 6 anos depois de voltar a ouvir, eu tenho conseguido prestar atenção no que dizem e ainda tomar nota do que considerei importante. Esse aprendizado passou por um longo processo, mas não tinha ninguém para me ensinar como ele deveria ser feito. Nem que ele era necessário. Só teve uma gestora com zero empatia para me chamar de incompetente porque eu não sabia fazer isso. Ou seja, não existe alguém para te avisar dos processos que são óbvios para quem nunca teve deficiência auditiva, mas não são nem um pouco naturais para você.

O que tem sido mais incrível ainda no passar dos anos também, não é meramente a minha mudança de comportamentos e meus aprendizados, mas a percepção dos olhares dos outros sobre mim. Hoje, eu já não noto tanto aquele olhar de condescendência, como se eu fosse café-com-leite na vida.

O implante coclear, no meu caso, não foi apenas uma ferramenta de aprendizado auditivo e de acesso ao som. Mas de reconstrução completa da pessoa que eu sou. É muito mais do que uma tecnologia que me permite ouvir. Ele é um agente de transformação de alguém com total incapacidade auditiva em alguém que ouve através de uma tecnologia. E, acredite, essas duas categorias são bem distintas entre si.

Beijinhos sonoros,

Lak Lobato

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