Ter uma filha com implante coclear nos EUA, como é a realidade por lá?

Um dos maiores benefícios das redes sociais é a possibilidade de ter contato com pessoas que moram em qualquer lugar do mundo, quase diariamente. Para nós que usamos uma tecnologia para ouvir, esse contato pode, inclusive, esclarecer as diferenças culturais em relação à realidade de usar a mesma tecnologia em outro país.
Por conta desta curiosidade que eu – e muitos, acredito – temos sobre a realidade dos implantados em outros países, trouxe uma entrevista com a querida Gabie Araújo, que sempre nos conta nos grupos de implante coclear como é a vida dela nos Estados Unidos, tendo uma filha implantada.

Gabie e Bianca

[DNO] Conte um pouco de você. Você é brasileira, né? Mas mora nos EUA desde criança? Como é sua relação com o Brasil e com a realidade brasileira?

[Gabie] Sim, Sou Brasileira, nasci em uma cidade satélite de Brasília chamada Ceilândia e minha família por parte de mãe, está em Taguatinga. Vim para os EUA com 3 anos de idade e moro aqui desde então, com uma breve estadia no brasil de 2005-2010. Meu contato com Brasil e a realidade brasileira foi nessa época de “imigrante” no pais de origem (risos). Eu me sentia uma estrangeira, tudo era estranho pra mim, mas tive a oportunidade e estudar e trabalhar e pude ter uma ideia do que é SER de fato, brasileira.

Fale um pouquinho da sua escolha pela maternidade. Quais eram suas expectativas antes de ser mãe.

Bom, comecei em pensar a maternidade com um pouco mais de 16 anos, ao ser diagnosticada com endometriose. Na verdade, pensava na impossibilidade da maternidade. A gravidez da Natalie veio como um choque, estávamos certos que seria uma longa batalha pra conseguir engravidar, mas antes mesmo de começar qualquer tratamento, estávamos grávidos! A gravidez da Bianca foi igualmente inesperada, apenas 6 meses após o nascimento da Nati, já estava esperando novamente grávida! Mesmo não estando “preparada”, se que isso é possível, sempre tentei manter expectativas mínimas: Saúde, Carinho e Amor sempre foram as bases das expectativas maternas!

Como foi a descoberta da surdez da Bianca? Ocorreu ainda na maternidade? Existe teste de orelhinha nos EUA?

A descoberta da surdez da Bianca foi exatamente como a descoberta da gravidez: mistura de desespero e euforia. Ela tinha quase dois aninhos (2014), e temia algum tipo de deficiência cognitiva que poderia limitar a possiblidade de uma vida independente. Acho que a maior preocupação de uma mãe é que os filhos não consigam viver sem ela. Demorou essa descoberta, porque ela tinha passado – sem ressalvas – no teste da orelhinha. Então, apenas após o atraso da fala que começamos a pensar que algo não estava certo.

Aqui nos EUA tem um programa chamado Early Intervention (varia de Estado pra Estado) onde o Estado fornece serviços de apoio à crianças que estão aquém em seu desenvolvimento, seja esse atraso físico, cognitivo, na fala, etc.) Entrei em contato com eles e, após uma avaliação, determinaram que sim, a Bianca estava com a fala atrasada, porém cognitivamente, parecia esta tudo normal. Ofereceram ela ter consultas com uma fono uma vez por semana e uma terapeuta ocupacional uma vez na semana também. Na primeira sessão com a fonoaudióloga de reabilitação, ela me encaminhou para uma fonoaudióloga especializada em exames e diagnósticos de surdez, para termos certeza que estava tudo bem com a audição da Bi. E ai, começamos a nossa jornada nesse universo Surdo.

Como te passaram que seria o caminho de lidar com a deficiência dela? Encaminharam direto para a ASL (american sign language, equivalente americano da líbras)? Ou o IC também foi indicado cedo?

De inicio, como é o mais comum, nos indicaram a ASL. Comecei a fazer aula e tentava ensinar os baby signs pra ela e a Natalie, conforme ia aprendendo. O tempo foi passando e a Bianca se adaptou MUITO BEM ao aparelho verbalizando ou tentando verbalizar, a toda oportunidade. Posso dizer que ela mesmo ditou seu caminho, porque quando veio à tona a queda de uma perda moderada pra severa/profunda e menção do IC em novembro de 2015, não tínhamos duvida que a escolha da Bianca seria o IC. Ela gostava de aprender ASL, mas quando queria se comunicar, sempre optava por oralizar.

Como foi o processo do implante? Unilateral? Bilateral? Os convênios cobrem? O governo ajuda de alguma forma?

Devido a deficiência, ela tem direto ao Medicaid, que o seguro saúde federal. O medicaid cobriu TUDO, da primeira consulta (retroativo!) até os mapeamentos que ela faz até hoje. Quando optamos pelo implante, o otorrino e a fonoaudióloga que a acompanhavam até então, nos encaminhou a um Hospital Universitário mais próximo, que tinha um programa para candidatos a IC. Toda a burocracia da cirurgia foi negociada por eles, que tiveram um cuidado gigantesco com nossa família, nos preparando não só pra cirurgia, mas também o pós-cirúrgico e as terapias de fala que seguiria com cada mapeamento. Tivemos reunião com uma fonoaudióloga de reabilitação (que foi meu primeiro contato com ATV: auditory verbal therapy – uma metodologia específica de estimulação e desenvolvimento de linguagem oral para crianças com tecnologias auditivas), a fonoaudióloga de programação e o otorrino cirurgião e ainda, uma geneticista. Ai marcaram a 1ª cirugia do lado direito para o dia 13 abril 2017 e a segunda do lado esquerdo para o dia 27 de Agosto de 2017.

Como foi a inclusão escolar dela? 

O processo de inclusão se deu na época de transição do Early Intervention para o Distrito Escolar Público, quando a Bianca ainda tinha apenas 3 anos de idade, antes mesmo dela receber os implantes (ela completou 3 aninhos em outubro de 2016). Inicialmente, o Distrito queria pagar pra ela estudar em distrito vizinho, que já tem um programa de Total Communication/ASL a mais de 30 anos. Porém, quando fui visitar a sala de aula, não senti a “total inclusão” que eles me falaram. Era um sala de 5 alunos totalmente adaptada, com acústica adequada, porém as crianças só tinha contato com os outros alunos nas aulas especiais como música, artes, educação física. Eu me senti mal com aquilo, porque minha filha AMAVA interagir, brincar de faz de conta, fazer amizades e aquela sala por mais preparada que fosse, era fria, sem calor humano.

Então, depois de conversar com meu marido sobre essas receios, concluímos que queríamos manter ela no nosso distrito, mesmo que o apoio não fosse tão bom quanto na outra escola, ela estaria imersa no mundo ouvinte, que ela já tinha demonstrado querer continuar a pertencer.

Você poderia explicar um pouquinho sobre o ATV, a metodologia utilizada atualmente com ela na escola?

Após o implante e a escolha de ficar no nosso distrito, flutuamos um pouco antes nos encontrar. Bianca, logo de cara, começou a receber terapia com a fono quatro vezes por semana, porém não era nada voltado para uma criança surda. A terapeuta abraçou a causa e começou a se inscrever e todos os workshops sobre metodologias e estratégias de ensino usadas com crianças surdas oralizadas. Descobrimos juntos que em uma cidade vizinha, a aproximadamente uma hora de distância, havia uma escola que enviava auxiliares itinerantes pra trabalhar com as crianças dentro das escolas públicas. Imediatamente convoquei uma reunião e pedi que incluísse esse serviço em seu plano de ensino. E assim foi feito! Como não sou de ficar esperando nada acontecer, eu também entrei contato direto com a escola pra saber se teria como a Bianca receber sessões de fono com a profissional deles. Eles me colocaram em contato com uma terapeuta ATV que acabou vindo em minha casa duas vezes na semana, durante quatro meses, até ser contratada pra trabalhar juntamente com o distrito na implementação de um programa voltado para Surdos Oralizados na nossa região. E Aqui estamos! Já com 10 crianças matriculada entre 4 e 10 anos, todas recebendo ATV e com inclusão total em suas salas de aula e escola!

Como está sendo o desenvolvimento dela?

O desenvolvimento da Bianca esta como o desenvolvimento de qualquer outra criança da mesma idade!! Após o IC, posso dizer que a personalidade dela aflorou sem igual! Hoje, conheço minha filha de verdade! Por exemplo, sinto que até um ano e meio atrás, recém implantada e se redescobrindo aos sons, ela ia muito na onda da irmã. A Natalie ama dançar, então a colocamos no ballet, a Bianca quis ir também, por tabela. A Natalie era louca com Princesas Disney, a Bianca gostava por tabela. Hoje, mais velha e mais segura de si, ela tomou a inciativa de pedir pra fazer aula de piano! Ela explicou que nunca gostou de ballet, só gostava da música! Em relação a Disney, ela continua gostando da Princesas, mas prefere os personagens animais ( Mickey, Minnie etc.) pq segundo ela vai ser Veterinária quando crescer!

Como você acha que os americanos lidam com a deficiência aí? As expectativas para um futuro são promissoras?

Não vou ser hipócrita e dizer que TODOS lidam bem com a deficiência aqui nos EUA. Há muita gente ignorante que pensa e fala muita besteira, porém a maioria acho que lida de forma inclusiva e respeitosa. Até hoje, não tive nenhuma situação onde senti minha filha sendo descriminada por ser Surda e/ou usuária de IC. Acredito sim que ela sempre terá que provar sua capacidade de fazer x ou y, mas não por ser surda, mas porque a cultura americana é baseada em meritocracia. Ninguém merece mais ou menos do que ninguém, merece aquele que fizer melhor e pode ser mais produtivo. Mas, conhecendo a determinação dessa pequena, qualquer coisa que ela inventar de fazer ou querer, ela vai fazer o que for necessário pra conseguir!

Beijinhos sonoros
Lak Lobato

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